quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

CRÔNICA DE UM ANO PARA NÃO SER ESQUECIDO

 

Fazer um “balanço de final de ano" é como jogar daquelas partidas de futebol onde o time de tão fraco, só espera não ser goleado e o empate, como dizia a anedota atribuída ao folclórico ex-técnico e jogador, Mário Jorge Lobo Zagallo, já seria um bom resultado. Mas o que dizer de um ano tão destrutivo e desalentador como foi o de 2020?

Primeiramente, uma coisa é certa: quando se aposta no erro, o resultado não poderá ser outro, senão a consagração da lambança! Nada repercutiu mais em nossas vidas do que um vírus que alterou nossos comportamentos, atitudes e escancarou o que tem de pior nos seres humanos: o novo coronavírus causador da famigerada COVID-19. Muitos de nós já estamos exauridos de ouvir falar do vírus que ceifou milhões de pessoas pelo mundo e nos nossos arredores. Porém, ignorar o vírus não faz ele e seus efeitos desaparecerem diante dos nossos olhos entediados. No nosso Brasil que enfrenta a pandemia com a resistência de um prego fincado na gelatina, se encontra hoje na vice-liderança mundial tanto em número de contaminados, quanto em número de mortos. Parabéns pela nossa incompetência e descaso governamentais! Tudo que foi feito para dar errado, simplesmente, deu errado! Incrível, não é? A pergunta que muitos fazem com menosprezo diante de números alarmantes de contágios e óbitos: “E daí?”.

Em segundo lugar, o que mais impressiona em momentos de crise é o que define qual nível de singularidade de sociedade vivemos e elaboramos nossas ações. O comportamento diante de situações adversas diz mais sobre o sujeito do que a narrativa que ele elabora sobre si mesmo. As famílias ficaram de alguma forma mais distanciada uma das outras, os rostos ficaram mais mascarados do que habitualmente e agregados com novos hábitos de conduta pessoal e coletiva. Desde as primeiras mortes até hoje, as pessoas tomaram algum tipo de medida de proteção individual ou, simplesmente, o abuso da cristalina indiferença ou negacionismo sobre os fatos. Nestes detalhes tão peculiares, os aspectos comportamentais orientam os laços sociais que interagem nos agrupamentos humanos. Neste contexto, outra pergunta que merecemos fazer: “Qual é o papel social de cada um diante do outro?”.

Em terceiro lugar, em um mundo cada vez mais frágil de elementos que sustentam simbolicamente a condição humana, como é possível caminhar e ter a coragem de não fraquejar diante das intempéries? Em momentos de epidemias, a morte é mais presente no imaginário popular. A reação à ela oscila entre a paranoia, o ceticismo e o sarcasmo. A visão que cada um tem sobre seus íntimos valores morais constitui a amálgama que irá fomentar a ação do sujeito perante a iminência da morte. Em uma sociedade que assiste mortes diárias por uma doença como a COVID-19, cada dia que se passa, a comoção se dilui e o que incomodava vira coisa rotineira. Nós temos a incrível capacidade de adaptação às mais diferentes situações.  Aceitamos com mais passividade uma situação degenerada do que buscarmos imprimir uma mudança significativa à ela.

Em quarto lugar, a rebeldia se mostra como uma brincadeira de criança e a posição de mudança social virou apenas um novelo romântico todo amontoado e embolorado. O nível de rebeldia hoje se dá na transgressão dos costumes dos comezinhos moralistas e não as grandes transições sociopolíticas. Em tempo de COVID-19, por exemplo, jovens aceitam ouvir qualquer coisa que emite ruído sonoro em festas clandestinas (ou não) em plena pandemia para se contaminarem e levarem o vírus aos seus familiares. Outra postura curiosa é recusar usar máscara de proteção individual ou usá-la, propositadamente, de modo incorreto colocando-a como se fosse um elemento de “fraqueza” ao exibir sua condição de “protegido”. Percebe-se que a transgressão se transformou em um elemento de bricolagem de um narcisismo infanto-juvenil e não mais de um agregador de desejos substanciais de mudança social.

Por fim, o quinto tópico a ser destacando se reduz no gozo da perversão que aflora em sociedades fragmentadas e não conseguem construir verdadeiros laços de solidariedade. O individualismo se tornou hoje um elemento patológico, fanatizado e autodestrutivo. Valores para além do ego do sujeito são satirizados em nome do mundo do próprio umbigo. A ação hedonista dos sujeitos aglomerando-se em praias, bares e ruas em plena pandemia expôs o nível da barbárie que a negligência do Poder Público patrocina numa sociedade cujos valores festejados são plasmados na ganância, no nível de autossatisfação imediata e na indiferença perante os projetos coletivos sociais. Neste ambiente, os lações sociais viram apenas adesismos oportunistas de uns com os outros impregnando uma fragilidade no tecido social tão volátil que tem duplo impacto no sujeito: o vazio existencial individualizado e a depreciação das relações sociais.

Nesta atmosfera, diante das fragilidades dos laços sociais e da alteridade, não é de se espantar que o país, voluntariamente, em 2018, entronou na presidência um ser tão grotesco, ignorante e abjeto para representar uma nação que se encontra em transe coletivo desde 2013.  Logo, diante do fatídico ano de 2020, não podemos nós dar o luxo de esquecer suas nefastas consequências: adentramos no abismo que construímos com ignorância, estupidez e violência diante de um teatro de absurdos consagrados como “verdades” postuladas na mídia e em redes sociais.

Vamos ser bem sinceros e objetivos: Não, não foi nenhum microrganismo como um vírus pandêmico que causou tantos destroços em nossa sociedade, mas nossa própria incapacidade de nos constituirmos como espécie humana perante a complexa arquitetura social. A ação virótica do vírus é de alta destrutividade, mas a organização de uma sociedade primada pela naturalização das disparidades sociais é mais letal do que qualquer doença contagiosa. Ao abandonarmos os mínimos valores que regem a organização social com solidariedade, igualdade socioeconômica e espírito crítico, aceitamos um horizonte de desgraças e, pior ainda, não nós responsabilizamos por nossas próprias ações sejam elas pessoais ou coletivas.

O ano 2020 foi tragicamente exemplar. Nossas feridas ficaram todas expostas, além de nossas ignorâncias, nosso desapreço com a vida alheia, nossas fragilidades e monstruosidades subjetivas e objetivas enquanto sujeitos sociais. Naturalmente, temos que fazer justiça: assistimos também a grandiosa ação de trabalhadores heroicos anônimos que dignificaram a insensata condição humana na batalha pela vida daqueles que estiveram e estão na linha de enfrentamento da epidemia, seja em recintos hospitalares, seja em ambientes que possibilitaram a manutenção da necessária sociabilidade. Certamente, são estes os bravos trabalhadores que merecem todo o respeito social e não patéticos “ídolos pop” que exaltam boçalidades na mídia e nas redes sociais. Exaltemos a luta daqueles que batalham contra o vírus e não aqueles ignóbeis que ajudam o vírus a proliferar!

Afinal, o que podemos aprender com tudo isto? Ao olharmos ao espelho e compreendermos a respeito da nossa finitude e fragilidade diante da vida será o iniciar de uma longa e tortuosa jornada por nossas mais íntimas percepções. Somos sujeitos sociais e elaborados diante de uma sociedade que disfarça com muita rapinagem os mecanismos ideológicos que transformam seres humanos em narcísicas marionetes sociais autofágicos que pouco acreditam em si mesmos e no sentido da própria vida.

Em 2020 eclodiu o que há de pior em nosso meio social, mas podemos fazer diferente disso?  A resposta é sempre positiva diante das possibilidades transformadoras da razão, da sensibilidade, da alteridade e do vigor do espírito criativo do ser humano, mas a questão central é: será que queremos ser melhores do que realmente nos esforçamos para nos degenerarmos com tanta displicência suicida? 

 

sábado, 21 de novembro de 2020

OPIÁCEOS E OUTROS BICHOS

Ao elegermos "inimigos" genéricos e imaginários, aparentemente invocamos uma batalha a ser travada com algum horizonte de vitória.

Apaziguar a alma em desencanto e sedenta de respostas para as angústias insolúveis. Porém para tanta ilusão, falta o substrato da realidade.

Elaborar "inimigos" é uma forma de sustentar a incapacidade de entender o mundo e gozar com a ignorância.

As guerras se travam para além das aparências. Na terra da subjetividade, a verborragia impera impondo o discurso do irrealismo passional!

A norma da inação é a construção de um arcabouço onde nossos medos se escondem e vaza, entre os poros, do inconsciente coletivo um primitivismo tão sedutor quanto destrutivo.

Para o sujeito, desprovido de uma consciência de classe e de mundo, sobra espasmos irrealistas e reducionistas de uma sociedade desigual e injusta que opera tanto pelo material, quanto pelo simbólico/imagético. O buraco segue logo após os espasmos da aparência.

O mundo não dá espaço para a essência e constitui o seu calabouço com suas imagens ideológicas, simbólicas e persuasivas.


terça-feira, 17 de novembro de 2020

O BRASIL PLASMADO NAS URNAS: UM BREVE BALANÇO DAS ELEIÇÕES NA PANDEMIA


Em meio à maior crise sanitária de todos os tempos, o Brasil resolveu insistir em fazer a manutenção do processo eleitoral municipal e ignorar os quase seis milhões de contaminados pelo novo coronavírus, Sars-Cov-2. Na mesquinhez da vida cotidiana bancada por uma elite insensível ao sofrimento da grande maioria da população, os interesses políticos imediatos se tornam superiores aos das vidas humanas. As eleições foram decorrentes de grandes aglomerações, com candidatos em campanha ao longo das últimas semanas e da movimentação deste domingo eleitoral.  Com o final do primeiro turno, as eleições na pandemia mostraram alguns sintomas que serão pontuados a partir de um breve esboço do panorama da política nacional do ponto de vista da arquitetura de poder constituído pelos municípios. Em todo o país, com máscara, álcool em gel e título na mão, o eleitor foi fazer a sua escolha de prefeitos e vereadores, marcando elementos norteadores de algumas considerações sobre a política imediata brasileira.

O primeiro ponto, no quadro nacional, notadamente, o grande perdedor foi Jair Bolsonaro. Com exceção do Rio de Janeiro e Fortaleza, os candidatos apoiados por Bolsonaro não decolaram em nenhuma outra capital. Os casos do Rio de Janeiro e Fortaleza, os candidatos bolsonaristas foram para o segundo turno das eleições de forma sofrível e baixa votação que se esperava de antemão. Muitos dos candidatos apoiados por Bolsonaro, como Celso Russomano, em São Paulo, esconderam ou disfarçaram, ao longo da campanha, o apoio dado daquele que foi o maior responsável pelas 165 mil mortes por COVID-19 neste país. Dois anos após a grande explosão do eleitorado extremista de direita que impulsionou a escolha de Bolsonaro ao Palácio do Planalto, a questão mais importante desta eleição é o fato das candidaturas ligadas à extrema-direita demonstrarem estar em aparente refluxo eleitoral no país. Em 2020, o resultado das urnas mostrou uma perda de fôlego destas candidaturas que apoiam o extremismo político como forma de ampliar o primitivismo da sociabilidade brasileira. Todavia, isto não significa que teremos tempos com ares democráticos para os próximos pleitos.

Apesar desta perda de fôlego das candidaturas extremistas, observou-se, em segundo ponto, ainda na onda das eleições de Bolsonaro e sua truculência fascistizante refletida nas eleições de 2018, o ressurgimento de diversas candidaturas de militares, forças integrantes de polícias, delegados, juízes e militantes ligados às demandas da segurança pública. Diante da guinada ultraconservadora no debate político em parcela significativa da sociedade, tais candidaturas tiveram grande visibilidade e, como se previa, foi quase nulo o real debate político. Este é um nicho que irá perdurar enquanto ainda tiverem fôlego os estratagemas bolsonaristas, na sociedade. Fato preocupante é os principais partidos de esquerda, PT e PSOL, oferecerem este tipo de candidatos para o eleitorado, como é o caso da esdrúxula candidatura petista da Major Denice, em Salvador.

O terceiro ponto, a onda identitária ampliou-se ainda mais nesta eleição. Em nome de uma maior representatividade, foram promovidas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), as cotas partidárias para impulsionar “candidaturas negras”. Contudo, de forma genérica, em nome da representatividade, houve uma oferta dessas candidaturas e que tornou o debate da política mais maniqueísta, com a construção de um falso “trade off” entre negros versus brancos. Do ponto de vista da estratégia política, com a onda identitária forte, da esquerda à direita, muitos candidatos reivindicaram o misticismo da “ancestralidade negra” para si, em busca de se colocarem como herdeiros transcendentais da tradição da “cultura negra”. Com tal estratégia bem definida, tais candidaturas buscaram angariar simpatia e votos para uma causa que, na prática, se tornou recurso de um discurso unilateral e personalista. Na esteira das identidades, não faltou a exaltação à “força da mulher”, com as candidaturas “feministas” e, além delas, as candidaturas “transgêneras”. Apesar de corresponder a 50,6% da população brasileira, a questão da candidatura das mulheres merece destaque quanto à participação do percentual de prefeituras conquistadas, 12,2% somente no primeiro turno, conforme dados do TSE.

No quarto ponto, é perceptível uma onda de pessoas que ingressam na política, buscando lentamente substituir elementos mais conservadores. Há uma tendência de algumas democracias ocidentais colocarem estes novos atores para administrarem o capital. Um exemplo patente desta premissa foram as eleições estadunidenses e, por sinal, com reflexos no Brasil, onde as candidaturas identitárias que se inspiram em ideologias neoliberais, ganham visibilidade social e são patrocinadas tanto pela grande mídia, quanto pelos grandes grupos empresariais fomentadores de campanhas eleitores. Vale lembrar que o simples fato destas candidaturas estarem reunidas em partidos de esquerda, não quer dizer que tais candidatos comungam de ideias mais pertinentes a uma esquerda clássica, com bases marxistas.

No quinto ponto, observa-se uma eleição paradigmática em São Paulo. Apoiado pelo governador João Dória, o atual prefeito, Bruno Covas, foi para o segundo turno, com quase um terço dos votos válidos e disputará a prefeitura com Guilherme Boulos, do PSOL. Fato pertinente foi o mísero percentual de um pouco mais de 8% do leniente candidato do PT, Jilmar Tatto. Com erros estratégicos grotescos, em São Paulo, o PT amargou a pior votação dos últimos tempos na capital paulista, cidade esta que o partido governou em três mandatos: com Luiza Erundina (1989-1992), Marta Suplicy (2001-2004) e Fernando Haddad (2013-2016). Sem buscar uma coalização com os partidos de esquerda na capital paulistana, PT e PSOL disputaram os votos do eleitorado. Boulos, com mais carisma midiática do que o insosso Tatto, logo ganhou musculatura em sua candidatura e angariou tanto os votos do eleitorado petista e simpatizantes do partido, quanto o campo mais progressista não-atrelado ao petismo. Com pouco mais de 20% dos votos válidos, Boulos consolidou-se como uma liderança ascendente na política paulistana à esquerda. Todavia, caso deseje, de fato, ganhar a prefeitura da conservadora São Paulo, terá a missão de se distanciar das querelas identitárias de uma classe média, pretensiosamente ilustrada, do seu partido e voltar-se ao campo da realidade, buscando votos das periferias e dos trabalhadores.

O sexto ponto poderá ser observado na fragmentação da unidade das esquerdas. Tanto em São Paulo, quanto no Rio de Janeiro, a desunião das esquerdas foi flagrante. No caso do Rio de Janeiro, Benedita da Silva do PT e Renata Souza do PSOL, naufragaram suas candidaturas em disputas fratricidas. Em São Paulo, nem mesmo a direção do PT acreditava que Tatto fosse para o segundo turno e, mesmo assim, insistiu com a candidatura, numa cena vexatória em termos de eleições majoritárias. Sem nenhum aceno real à candidatura de Boulos, o próprio PT contribuiu para sair do protagonismo do atual momento político. Há um saldo positivo em meio ao caos eleitoral para o PT, em ternos de votos para a vereança, onde conseguiu ter a liderança em número de votos e ainda obteve a honraria de ter o veterano Eduardo Suplicy como o vereador mais votado de São Paulo.  

O sétimo ponto desta análise, no calor do momento, visa a eleição em aberto para a presidência em 2022. Apesar da derrota sensível das alas bolsonaristas nas eleições deste ano e a perda de popularidade e de rumo do seu governo, Bolsonaro segue com uma parcela fiel do eleitorado que, atualmente, se encontra em um percentual de 30%, segundo pesquisas mais recentes. Importante destacar que os principais partidos da órbita da extrema-direita com laços estreitos com o bolsonarismo, segundo dados consolidados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de prefeitos eleitos no primeiro turno, tem-se o PSL, o Republicanos, o PSC, o Patriotas e o PRTB que, juntos, conquistaram cerca de 8,6% das prefeituras do país. Todavia, é importante destacar a ampliação das prefeituras do conjunto destas cinco siglas que passaram de 244 prefeituras em 2016, para quase o dobro, 467, em 2020.

A partir deste percentual, o oitavo ponto se revela com grande preocupação e requer maior atenção. O campo das esquerdas, aqui destacando os três principais partidos com representação na Câmara dos Deputados e na conquista de prefeituras: o PT, o PSOL e o PC do B, juntos conquistaram 229 prefeituras somente no primeiro turno destas eleições (sem a necessidade de um segundo turno), em um total de 5400 municípios. Este percentual significa apenas 4,2% de todo o conjunto dos municípios. Um aspecto é o recuo de 32% no número de prefeituras deste conjunto, o qual passou de 337, em 2016, para 229, em 2020. Somente o PT perdeu 75 prefeituras entre 2016 e 2020, ou seja, um recuo de quase um terço do seu mapa de administração nacional de municípios. Por outro lado, o crescimento das prefeituras conquistadas pelas siglas da extrema direita bolsonarista é significativo e representa praticamente o dobro das siglas à esquerda do espectro político. Tais números demostram os desafios de romper a bolha de mediocridade e conformista que se instalou no pensamento de esquerda brasileira atualmente. Em 2018, a subestimação da ascensão de Bolsonaro foi um exemplo da falta de estratégia do campo das esquerdas e do campo mais progressista. A decorrência de erros estratégicos que já datam desde 2013, diante dos protestos de inverno capturados pela direita, a qual culminou na derrubada da presidente Dilma Rousseff, possibilitou a maior ascensão do populismo da extrema direita da história do país. O reflexo da escalada do bolsonarismo da extrema direita no Brasil refletiu na explosão do número de assassinatos de candidatos nas eleições deste ano no país. Este ponto merece ser analisado com maior refinamento em outra oportunidade.

Um nono ponto que merece ser observado é o número de votos não válidos, ou seja, a somatória de abstenções ou ausentes, brancos e nulos. O reflexo direto da pandemia se fez presente nestes números, além do desinteresse popular pelas eleições. No Brasil, segundo o TSE, este percentual foi de 30,57% e, em particular, na cidade de São Paulo, 40,59%. Em termos comparativos, este número é deveras alarmante na cidade paulista, posicionando-a na primeira colocação geral entre os candidatos concorrentes à prefeitura, no pleito deste domingo, 15 de novembro. Trocando em miúdos, o grande vencedor das eleições em São Paulo foi o conjunto das abstenções, brancos e nulos!

E por fim, chega-se ao décimo ponto. O grande vencedor dessas eleições foram os partidos tradicionais da direita (MDB, PP, PSD, PSDB, DEM, PL e PTB) que juntos somaram 3417 prefeituras somente no primeiro turno das eleições de 2020. Número tão expressivos que corresponde a 63% de todos os municípios brasileiros! Diante desta realidade, a questão central é a escolha de um candidato aglutinador e que possa ampliar a massa de votos e ser competitivo para conquistar o eleitorado para a esperada sucessão de Bolsonaro.

Observando os dez pontos em destaque, sobressai-se uma predominância que ficou explícita ao logo da batalha do primeiro turno das eleições de 2020: nenhuma candidatura “puro sangue”, ou seja, totalmente composta por candidatos (titular e vice), no campo das esquerdas, sagrou-se vencedor em nenhuma cidade política ou economicamente com relevância no cenário nacional. Mais do que nunca, para o campo da esquerda e dos setores mais progressistas, é hora de baixar o salto da prepotência e ampliar a análise da conjuntura tendo em vista o arco de alianças políticas, caso deseje derrotar o desgoverno fascistóide de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.

Dentro de alguns dias, teremos o segundo turno das eleições com 57 cidades, incluindo 18 capitais, para definirem seus prefeitos, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife. São cidades com maior aporte populacional, político e econômico e, por sua vez, merecerá uma análise mais pormenorizada e, posteriormente, será elaborada e divulgada.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

AS PRIMEIRAS PALAVRAS DE BIDEN

 


Após hollywoodiana ansiedade do desconexo processo de apuração de votos, a noite deste sábado, 07 de novembro, registrou o primeiro discurso do democrata Joe Biden como presidente eleito nas urnas. Conquistando os votos dos chamados "estados-pêndulos" (sem uma direção sistemática para qual seus eleitores votam, seja democrata ou republicano), Biden assegurou os votos necessários para a conquista do Colégio Eleitoral. Por sinal, desde o dia oficial do início da votação em 03 de novembro, diante de um sistema eleitoral confuso e ultrapassado, ainda não foram contabilizados os votos integralmente devido aos votos provenientes do correio. Nos Estados Unidos, há uma tradição singular que o eleitor pode fazer uso do mecanismo do voto pelo correio!

Com mais de 75 milhões de votos assegurados, um recorde histórico, em tom conciliador, centrado e conservador, Biden fez seu primeiro pronunciamento com otimismo e agradeceu aos familiares, seus apoiadores de campanha e exaltou a sua vice-presidente, companheira de chapa, Kamala Harris.  Foi mais protocolar do que a situação exigiria, mas Biden sempre foi da cepa conservadora do Partido Democrata.

Ciente que o processo eleitoral acirrado aprofundou as rachaduras imanentes na sociedade estadunidense, Biden afirmou que irá trabalhar para unir o país e será o presidente de todos os estadunidenses, independente de quem votou nele. Um recado explícito para tentar acalmar os ânimos dos eleitores mais afoitos e agressivos do derrotado extremista, Donald Trump. Por falar do atual presidente que fracassou nas urnas na sua tentativa de reeleição, Trump ainda não reconheceu sua derrota e afirmou que irá entrar na justiça contra a contagem dos votos. Além de um chauvinista canastrão, Trump é incapaz de reconhecer seus erros e derrotas, expondo o seu país aos vexatórios abalos institucionais!

Buscando pela prudência, a razão científica e humanitária, Biden lembrou dos mortos pela COVID-19 (o país é o atual campeão mundial de contaminados e com 240 mil mortos) e prometeu ação enérgica para conter a pandemia, assim que assumir o seu mandato, em 20 de janeiro de 2021.

Biden sabe que herdará um império em franca decadência e, drasticamente, piorou com herança da desastrosa administração Donald Trump. A perda de liderança ficou exposta na crise da pandemia do novo coronavírus a qual Trump se limitou ao papel obscurantista e irresponsável de negar a gravidade dos fatos, ter ações atabalhoadas para enfrentar a situação catastrófica, espalhou mentiras até mesmo por via do seu Twitter pessoal, comprou briga com governos locais que buscavam conter a doença e se confrontou sistematicamente com a direção e os cientistas da Organização Mundial da Saúde (OMS).

O tom do discurso de Biden foi de um retorno ao "orgulho americano" e de um futuro presidente que fará de tudo para reconstruir o protagonismo derretido internacionalmente do seu país. O mundo está bem diferente de quando os Estados Unidos se mostraram como astutos "grandes vencedores" da Guerra Fria com a diluição da antiga potência-rival, a União Soviética, no início dos anos 1990. Em um planeta multipolar com a China, a Rússia e a União Européia como consolidados líderes regionais e globais, o planeta está cada vez menos dependente da influência política e econômica dos Estados Unidos.

O mandato de Biden será decisivo para o futuro do império estadunidense e quais as relações efetivas que os Estados Unidos farão com o planeta. Não adianta nutrir grandes ilusões: Biden foi eleito para governar em prol dos estadunidenses e será para o seu país que os interesses se voltarão no complexo tabuleiro da  política internacional. Traduzindo em linguagem usual: o que será bom aos Estados Unidos não significará, necessariamente, que será bom para o mundo.

Nada é tão simples neste lamaçal que se transformou explicitamente a democracia estadunidense. Lembrar ainda que a extrema direita, com seus grupos milicianos armados, segue ainda bem articulada e Trump, mesmo perdendo a eleição, conquistou o fantástico eleitorado de 71 milhões de votos! A sua legião de admiradores extremistas segue com uma fé inabalável nas escrotices oriundas da boca inescrupulosa de Trump. Nada é tão trivial e não será uma eleição confusa, como a que foi registrada, que irá apaziguar a situação tão repentinamente. O fascismo e suas variantes autoritárias são como uma erva daninha, ao se destruir algum nicho reaparecerá novamente com mais vigor.

Contudo, uma nova era se abrirá nos Estados Unidos do futuro presidente Biden. Deverá ser inaugurado um momento de sutura política e institucional interna com um recuo da escalada autoritária da extrema direita liderada por Trump e, quem sabe, a possibilidade de ares um pouco mais democráticos para inspirarem as cambaleantes democracias a resistirem à tentação fascista ao redor do globo. O futuro está sempre em aberto e a História, inevitavelmente, precisará ser escrita. A esperança é sempre uma boa companheira, porém a prudência permanece como a melhor conselheira.

 

(Wellington Fontes Menezes)

 

terça-feira, 3 de novembro de 2020

ELEIÇÕES NOS ESTADOS UNIDOS: A LATINIZAÇÃO DA DEMOCRACIA E O FEITIÇO DO FEITICEIRO

Esta semana será decisiva para os Estados Unidos: a eleição que escolherá aquele que possuirá, como poder máximo, a primazia genocida de apertar o botão que detonaria toda a vida na Terra.

A maior potência bélica do planeta escolherá seu novo gerente majoritário. De um lado, o canastrão bilionário Donald Trump tentará sua reeleição, cuja administração está marcada na história, como a causadora do maior desastre sanitário, devido à negligência governamental com relação aos riscos oriundos da pandemia do novo coronavírus. Do outro lado, quase octogenário Joseph "Joe" Biden, ex-vice-presidente de Barack Obama, que tentará ser o novo presidente de uma potência em franca decadência.

Tanto o republicano Trump, quanto o democrata Biden, tem em comum serem velhos ricaços que falam para o seu público, o velho dito da "América para os americanos". Nos debates televisivos, a senadora afro-americana Kamala Harris, vice de Biden pareceu ser mais proeminente do que Mike Pence, vice de Trump. Tal qual no Brasil e no protagonismo dos vice-presidentes na história, em casos de presidentes anciãos, o vice se projetará ao poder. Um fato que não pode ser descartado nesta tumultuada disputa eleitoral.

Os interesses estadunidenses no globo se ampliaram com o seu crescimento econômico consistente e colossal. Lembrar que, até o final do século XIX era provinciana política estadunidense, a qual passou a operar em uma lógica que a tornou maniqueísta, durante o ingresso do país na Primeira Guerra Mundial: o mundo, então, se divide em dois, os americanos e seus interesses globais e os outros. É importante ressaltar a guinada colonialista dos Estados Unidos no século XX e sua supremacia como potência militar após a Segunda Guerra Mundial.

A guerra fria travada com a antiga União Soviética aperfeiçoou substancialmente o seu parque industrial bélico e ampliou a demanda por domínios coloniais, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista ideológico. Isto inclui também interesses geoespaciais com investimentos pesados no ramo astronáutico.

Para os entusiastas do modelo democrático estadunidense colocando-o como um totem da história, ao estilo de Francis Fukuyama, é importante estar atento. A arquitetura do regime estadunidense é para consumo próprio, ou seja, para os interesses das burguesias locais. Para quem está situado ao lado dos "outros", logo, o resto do planeta não-estadunidense e que não faz parte dos interesses de Washington, não adianta ter delírios sobre a "democracia americana": ela é bem clara, ela serve somente aos estadunidenses!

Em meio às eleições, a pandemia do novo coronavírus se aproxima dos 240 mil mortos e 10 milhões de contaminados, em números acumulados com COVID-19 em solo estadunidense. Em um clima eleitoral dos mais disputados e confusos da história recente dos Estados Unidos, Trump já se antecipou e fez declarações sobre sua indisposição em deixar o poder, caso seja derrotado em sua escalada na busca de novo mandato. Fato inédito na história institucional da orgulhosa "grande democracia da América". Alguns de seus apoiadores com perfis psicopatas estão armados, os chamados "supremacistas nacionalistas", ou seja, milicianos fascistas integrantes de grupos de extrema direita estadunidense, estão dispostos a entrar em combate em nome de Trump. Nunca a democracia estadunidense esteve tão ameaçada ao ponto de se assemelhar a um esboço cinematográfico de guerra civil em tempos recentes!

Na onda identitária do cínico "politicamente correto" estadunidense, tem-se as contendas raciais entre brancos, afro-americanos, mestiços, amarelos... Os nascidos na América, ou convertidos pelo "green card", podem se matar no plano interno, porém se o assunto é o patrocínio de golpes de estado e destruição de países alheios, suas lideranças estão juntas! Se "vidas negras importam", leia-se, "vidas americanas importam", o que vem, além disso, é mera demagogia produzida por Hollywood, para criar a imagética de uma "potência cordial e cidadã do mundo".

Para o Brasil, embriagado com a insensatez genocida de Bolsonaro, o cenário pouco se alterará com a eleição de qualquer um dos dois postulantes. O país entrou em uma política suicida de subserviência nunca observada na sua história. Os interesses de Washington se tornaram os próprios interesses automáticos da turma de Bolsonaro, com o seu vira-latismo ensandecido e irresponsável. Na gestão de Bolsonaro, a matriz das relações exteriores brasileira, o Itamaraty, se tornou uma espécie de embaixada dos interesses da Casa Branca. É inacreditável o nível de promiscuidade presente nas bolorentas políticas de relações exteriores brasileira na gestão catastrófica de Bolsonaro.

Nos próximos dias que se estenderão por meses, haverá um processo de ampliação da tensão política nos Estados Unidos. Ao contrário das principais democracias mundiais, o processo eleitoral estadunidense é uma roleta russa, cujo resultado nem as principais pesquisas eleitorais conseguem captar com certeza mediana. O processo eleitoral é lento, caótico, ultrapassado e poderá até distorcer a vontade popular, resultando em confusões gritantes, tal como ocorreu na primeira eleição de George, o controverso filho do ex-presidente Bush, que, mesmo perdendo na votação da população, diante de um cenário conturbado nas eleições de 2000, ganhou no Colégio Eleitoral.

Outro exemplo catastrófico da distorção proporcionada pelo sistema eleitoral dos Estados Unidos deu margem ao triunfo de Trump. As pesquisas eleitorais mostraram um cenário o qual daria vantagem à então democrata Hilary Clinton, em disputa com Trump, em 2016. Após os votos apurados, se confirmou a vantagem popular para Hillary que ficou com 48,18% dos votos válidos contra 46,09% de Trump. Contudo, no Colégio Eleitoral, a situação se inverteu, Trump foi consagrado vencedor com 304 votos, contra 227 de Hillary. Isto se dá pela representação dos estados na federação que compõe o intrincado sistema político dos Estados Unidos onde alguns estados tem mais representatividade política do que outros. A composição do Colégio Eleitoral representa este mosaico distorcido entre o voto da população e a sua representatividade.

Brigas internas, escândalos sobre fraudes eleitorais, contendas políticas buscando ser resolvidas no braço pelas ruas, judicialização das disputas eleitorais, negação dos resultados da eleição pela parte vencida e clima de golpe de estado, são exemplos que contribuem para um "caldo de cultura" destrutivo que os Estados Unidos fomentam e ofertam ao mundo, ao longo de sangrentos anos, em especial, aos países latino-americanos.

Agora, como se vê, "o feitiço está se voltando contra o feiticeiro", tudo no formato de uma dantesca tragédia ao estilo hollywoodiano e sem direito ao Oscar.

sábado, 26 de setembro de 2020

O NARCISISMO COMO BANDEIRA POLÍTICA

 


Na onda do identitarismo, temos a política da representação de si mesmo. Basta ter uma história triste, alardear a estigmatização fetichista da cor ou gênero e um discurso sobre o empoderamento do ego. Pronto! Todas as mazelas sociais se reduzem ao patrocínio de uma "vítima da sociedade", sem nenhuma crítica substancial contra o capital ou dominação burguesa.

O discurso do ego, embalado no estratagema neoliberal, parece sempre empolgar mais do que o discurso das classes sociais, em um mundo domesticado pelo desempenho da personificação dos sujeitos. Parece pouco importar o posicionamento ideológico na política que, diante desta performance da egolatria, adquire adeptos, votos e admiração. Nesta lógica, o racismo e demais desigualdades sociais se travestem em uma "mercadoria" positivada e atuam como bandeira política de autopromoção: quanto maior o nível da desigualdade, maior a polarização social e a sedução de guetos eleitorais.

No ativismo das identidades, não há nenhuma preocupação em apontar as razões das desigualdades sociais, para o sujeito se apresentar como um "não incluído" no sistema de consumismo capitalista. Para uma maior tranquilidade da burguesia, o sentido das lutas sociais é deixado de lado em prol do individualismo narcisíco da representação do sujeito. Para os adeptos do discurso da representatividade, basta entronar um representante "étnico" ou de gênero, e tudo se transforma pela magia que produz a transmutação dos fetiches. O discurso da representatividade é reverberado com a performance de um  moralismo autoritário e do clichê caricatural do inimigo comum da representatividade culturalista neoliberal: o vilanesco "homem branco hétero".

Os partidos políticos, cada vez mais fragilizados e perdidos ideologicamente, são usados como catapultas de autopromoção de sujeitos que olham para a política como a galinha dos ovos dourados. Pouco importa o partido, se há espaço para a projeção pessoal, o sujeito se atrela como craca em parede de navio.

Para quem sabe lidar com um contexto de percepção da opressão estrutural brasileira, gritar aos quatro cantos que toda a sociedade é culpada da sua condição de uma determinada desigualdade nominal, por exemplo, o racismo, poderá ser um excelente estratagema, sem precisar se comprometer com nenhuma plataforma política e tampouco com a realidade, exceto com o próprio ego.

O discurso da vitimização seduz e auxilia a burguesia em um momento histórico no qual ela aposta as suas fichas em novos gerentes dos seus interesses. Diante da fascistização do discurso social, a representação performática das identidades neoliberais e o neofascismo ultraliberal, aparentemente são grupos antagônicos, mas operam com os mesmos estratagemas na defesa do discurso neoliberal e a uma projeção de falsos moralismos. No espetáculo da miséria da política, um Brasil afunda sem  encontrar o solo para ser amparado.

QUANDO O ATIVISMO CEGO FAZ UM PÉSSIMO USO DA PSICANÁLISE

 


Quando o uso da Psicanálise se presta a um desnecessário papel de colocar mais areia no vendaval das orgias identitárias neoliberais, o resultado é a defesa do que não se compreende bem e, ao que parece, evita fazer tal trabalho.

Há uma confusão deliberada, em particular, no campo das esquerdas, entre o desejo do sujeito e o papel da consciência de classe, no insosso debate público, em plena desconstrução da razão em tempos de fascistização social.

O fetiche de uma suposta "descolonização do pensamento" (seja lá o que for isso!) faz o demagógico convite para um reencontro místico onde toda a verdade se encontra no narcisismo do sujeito e não na realidade material e historicamente construída.

Sigmund Freud que sempre foi um pensador do inconsciente da sociedade burguesa e que elaborou, com maestria, a difícil arte da subjetividade com a realidade, agora é invocado como defensor desta bricolagem pós-moderna de egos inflamados pelas leis do mercado de consumo! Uma operação falaciosa para descaracterizar o fundador clássico da Psicanálise. Não contente apenas com Freud, Jacques Lacan também foi colocado nesta barcaça furada.

Os ataques à razão seguem em nome de uma suposta "desconstrução moral e social", onde a responsabilidade das desigualdades sociais é destituída das opressões da sociedade de classes, para uma sociedade de moralistas do desejo narcisista. O elemento privado se torna o elemento público e é fundido numa operação que não tem mais fronteiras. O real e o simbólico se encontram no mesmo patamar e todo o saber historicamente construído é descartado, para dar vazão à pueril narrativa do sujeito.

Os estereótipos ganham vazão em todos os sentidos: seja para alimentar o mercado das múltiplas identidades de acordo com o desejo do cliente, seja para vociferar contra o malvado e genérico "homem branco hétero". A fantasia do parque de diversões identitárias é tão inesgotável quanto a capacidade do capitalismo em criar nichos de mercado.

O neoliberalismo que passou da esfera econômica nos anos 1970, atravessou o campo político e social e, agora, atinge o âmbito da cultura e do cognitivo. Nesta lógica panaceica, bastaria "empoderar o sujeito", um miraculoso empreendedor de si mesmo, para dar vazão às suas vicissitudes fetichistas e narcísicas e, por magia do inconsciente, todos os problemas estarão resolvidos.

O mundo das identidades descoladas da realidade é o da fantasia do ego à serviço da alienação do capital. O fetiche do "descolonizar o pensamento" é o novo bordão pós-moderno de aderir à onda anti-intelectual, negacionista e revisionista, o qual já está fazendo seus estragos sociais. Por sinal, estes são alguns dos estratagemas usados no campo dos neofascistas!

A Psicanalise é um pertinente instrumento de auxílio para a análise sociológica, porém ela não deve ser capturada por ativismos cegos, sem fazer as devidas reflexões dialéticas das relações que vão além de um psiquismo individualista e refém dos próprios desejos.


quarta-feira, 16 de setembro de 2020

A PANDEMIA NÃO É O PIOR DOS PESADELOS!

 
          Ao contrário do que governos reféns do ímpeto dos perversos capitalistas querem impor, a pandemia não acabou em nenhum lugar do mundo. No Brasil, o relaxamento ou, simplesmente, o fim da quarentena, apenas reforçou a irresponsabilidade governamental, gerando nefastas consequências da maior crise sanitária de todos os tempos. Muito diferente de celeumas na boca de papagaios de redes sociais e negacionistas das catacumbas da irracionalidade, a pandemia não é o pior dos pesadelos que a humanidade enfrenta no momento.

         De fato, o novo coronavírus representa mais uma desgraça para a humanidade, mas é um desafio que somente a consciente e solidária construção coletiva de prevenção poderá mitigar os efeitos da contaminação em massa e as mortes tão, lamentavelmente, desnecessárias. Todavia, sem compreender as interações da complexa sociabilidade humana, toda a retórica entoada fica entre o catastrofismo inútil e o cinismo genocida.

          Apesar do desejo da tal "volta à normalidade" com a promessa de uma vacina eficaz, nenhum dos estudos mostraram claramente que teremos um antídoto tão miraculoso globalmente em curto espaço de tempo (se é que o teremos exatamente desta forma!).  Uma pergunta que suscita muitas dúvidas: Será possível uma saída evocando alguma panaceia para esta crise sem efeitos colaterais? O tempo ainda será um elemento a ser elaborado para que se possa construir estratégias que busquem salvar vidas e a própria estrutura social. Afinal, o que é "normalidade" em tempos de capitalismo em crises sistêmicas?

        Os impactos econômicos da pandemia já demonstraram que o capital tem seu limite que é a própria fragilidade da natureza humana. A destruição em série para obter lucros esbarra na limitação do elemento humano. Por sinal, mostrou, novamente, que nada é mais importante para os capitalistas do que os seus lucros. Sem escrúpulos, o patronato submeteu grande parte dos trabalhadores de todo o mundo aos riscos do contágio, em nome da manutenção dos famigerados lucros.  Essa impiedosa busca atravessa qualquer súplica de proteção racional da vida!

         Vidas foram confinadas, mas nenhuma delas se compara às perdas humanas pela COVID-19. Contudo, nada parece ser capaz de sensibilizar a grande massa da população trabalhadora, condenada àquilo que se assemelha a uma "vida de gado", ou seja, alienada da sua subjetividade e sem nenhum valor para os donos do capital. Na lógica do capitalismo sem freios, o trabalhador somente será útil enquanto produtor de lucros, ou será descartado para a vala-comum do ostracismo de uma sociedade fadada ao consumismo em massa.

             O mundo dos grandes avanços tecnológicos voltados para o lucro, sem sequer uma preocupação com o sentido para a vida humana, é o mesmo mundo da esterilidade de vidas que não encontram significado para a própria existência. Para aqueles que conseguem, ou conseguiram, fazer sua proteção por via da quarentena, a pandemia desvelou um vazio muito além do que se imaginava na solidão dos sujeitos confinados em seus domicílios. A selvageria do capital vem transformando o mundo em um grande pasto de seres reféns do medo, do vírus e, acima de tudo, do irracionalismo em acreditar que é destruir ou ficar alheio a tudo, a forma de conseguir o seu salvação. A pandemia mais feroz se encontra na barbárie promovida pelo capital e aplicada, por seus abutres, aos lacaios de um sistema de opressão e alienação em massa, o qual ressalta e escancara todo o autoritarismo de governos inescrupulosos e potencializam a cultura da miséria humana.

            A globalização de uma pandemia retrata a interdependência cada vez maior entre os países e as pessoas. Em poucos meses, o vírus se alastrou tão rapidamente em todos os continentes e o planeta se transformou em uma "grande aldeia" (usando aqui um bordão que registra o cinismo dos neoliberais!). A fragilidade da vida ficou ostensivamente exposta e o medo do contágio se tornou referência primária em quase todas as preocupações diárias. Apesar de ser uma obviedade, mas em tempos de obscura militância negacionista, é importante ressaltar que somos seres biológicos e não máquinas para servir ininterruptamente a um punhado de seres gananciosos e perversos sem escrúpulos!

             Sintomaticamente, surgiu uma onda de histeria das identidades neo-eugenistas, incentivada pelo capital em plena pandemia. Para quem tem as rédeas do poder, a alucinação coletiva sempre foi um ótimo estratagema para dividir e dominar. É importante esclarecer que nenhuma vida é mais importante do que a outra e, tampouco, as cores decorativas sobre a pele merecem significar algum nível de relevância. A humanidade é única e, guardadas das devidas diferenças circunstanciais, os desafios globais são importantes para todos.

         A pontual pandemia mostrou a necessidade de outro modelo de sociabilidade, uma nova ética humana para um novo patamar civilizacional. A secular endemia causada pelo capital fragilizou os laços sociais, dividiu olhares de mundo, sodomizou valores humanitários e mercantilizou o próprio sentido da vida. A socialização dos recursos de todas as matrizes é vital para que os desequilíbrios se tornem mais amenos e a miséria social seja minimizada no planeta, assim como os níveis de contaminação da pandemia.

          Na lógica fratricida do capital, quando todos acharem que devemos matar uns aos outros e exaurir todos os recursos da Terra, ao ponto de deixá-la inóspita à vida humana, perguntar-se-á aos protagonistas da barbárie: Para qual planeta do universo os vencedores do genocídio global, isto é, se houver algum, irão partir e se estabelecer confortavelmente? Por fim, vale lembrar que toda a opulenta ganância desmedida é um futuro atestado de óbito.


domingo, 13 de setembro de 2020

NEM TUDO QUE RELUZ É MÁGICO!

         


           O obscurantismo é uma das maiores chagas da humanidade. Crenças místicas de um irrealismo primitivo atroz produzem violências físicas e psicológicas ao extremo.

        Para quem festeja o ilusionismo da "Mãe África" como lugar sagrado da perdida Canaã continental, é nesta região que se concentra países que praticam as principais atrocidades sexuais contra meninas cuja violência provém de genitoras do sexo feminino, em geral, às próprias mães. Devido às pressões internacionais do Ocidente, alguns governos destes países africanos vêm buscando combater tais práticas, porém a cultura da violência contra meninas segue ainda presente em uma lastimável realidade.

        A "cultura da mutilação genital" não se concentra somente nos países africanos, mas eles representam uma forte identificação deste misticismo bizarro. Para quem faz coro ao discurso apologético da cultura africana projetada pela fantasia alegórica de filmes e desenhos da Disney ou Hollywood, a realidade é sempre mais pétrea do que os ilusionismos das identidades.

        A indústria cultural transforma a realidade em fantasia e a fantasia esconde as agruras do mundo material projetado pelos que concentram riquezas e ditam as regras do jogo ideológico da humanidade. Quando ela não é sequestrada pelos capitalistas, a cultura é sempre uma projeção da sociabilidade e, não necessariamente, ela tem um saldo positivo. Para quem faz idolatria de culturas alheias projetadas na idealização mística sem lastro, é preciso entender que a realidade poderá perverter qualquer fantasia

A INTOLERÂNCIA DO CAPITAL À DEMOCRACIA

 

É uma ilusão acreditar na possibilidade de um capitalismo "livre", convivendo com o ideal de uma democracia robusta e plena. O cenário que vem se mostrando ao mundo é o de uma violenta reacomodação dos interesses dos capitalistas após a crise de 2008. Sintoma desta situação é o ressurgimento com grande força de uma onda de partidos políticos e líderes populistas de direita pregando capitalismo ultraliberal e, particularmente, o fim de direitos trabalhistas.

O fundamentalismo religioso e o irracionalismo culturalista são estimulados, tal como a onda das "identidades" que inventam uma miríade de sexualidades, alimentam um histrionismo egocêntrico do indivíduo contra valores coletivos e fantasiam míticos discursos étnicos de surreal ancestralidade, aos moldes dos contos da Carochinha.

Diante desta onda de retrocesso da razão e com a imposição autoritária, deve-se lembrar do refluxo dos partidos de esquerda na ação política e dos governos progressistas no continente americano. Casos mais notáveis são  dos Estados Unidos,  Brasil e Bolívia.

A subida do bilionário estadunidense, Donald Trump, ao poder, deu uma guinada radical na agenda reacionária de Washington. Foram poucos os presidentes dos Estados Unidos que falaram tão escancaradamente contra direitos dos cidadãos do próprio país e abusaram de atitudes autoritárias, tal como Trump. O cenário internacional refletiu a agenda ultraconservadora de Trump e, por sua vez, contribuiu para muitos políticos populistas de direita conquistarem cadeiras nos parlamentos e, diretamente, nos centros de poder executivo de seus respectivos países.

Na onda de Trump, temos o trágico caso brasileiro. Após o golpe de Estado de 2016, que derrubou a presidenta Dilma Rousseff, a sequência catastrófica da fragmentada democracia brasileira, em 2019, seguiu com a ascensão de uma junta miliciana de um inédito jaguncismo fascista de massiva popularidade, galgando ao poder. Na corrida eleitoral de 2018, ocorreu, por via de um fraudulento processo jurídico, a retirada do principal candidato das esquerdas e líder das pesquisas de intenção de voto, Lula da Silva, à presidência do Brasil. Sem um nome de consenso para a disputa eleitoral, um velho e medíocre político ultraconservador da extrema direita, Jair Bolsonaro, com a candidatura fascista foi eleito.

Em 2018, o então presidente Evo Morales, na Bolívia, ligado originalmente aos povos indígenas daquele país, foi derrubado com a subida de fascistas paramilitares religiosos, por via de um violento golpe de Estado.

Em todos os casos, contaram com a destacada anuência da justiça dos respectivos países. Um dos braços mais ativo da onda autoritária, o Poder Judiciário, participa com poder quase ilimitado, dentro das forças tripartites da República, tomando conta dos demais poderes, sempre com a justificativa da moralidade e a falaciosa sacrossanta missão do "combate a corrupção".

Utilizando-se apelos moralistas irracionais e angariando apoio das burguesia locais, os  fascismos, em diferentes estirpes, ganharam discursos, estratagemas, corpo, militantes e simpatizantes e, por fim, adentram nas democracias locais para impor uma ordem de subserviência aos donos do capital e à supressão de direitos trabalhistas e civis, eclipsando o horizonte da liberdade e da real justiça social.

A crise da democracia, ao redor do mundo, reflete a mudança da tolerância dos capitalistas aos regimes políticos. A construção democrática é um tear sempre muito complexo,  que pode, ou não, atender aos anseios mais imediatos dos capitalistas.

Apesar da complexidade dos fatos políticos, é pertinente ressaltar que as duas trágicas guerras mundiais do século XX tiveram, essencialmente, motivações econômicas movidas pelos interesses dos grandes capitalistas. O capitalismo nunca foi um fiel fiador da democracia liberal e a História sempre mostrou toda a mordaz intolerância do capital.



quarta-feira, 9 de setembro de 2020

A HEGEMONIA DO SENSO COMUM DO CAPITALISMO

 

Por mais respeito que tenha pela psicanalista Maria Lucia Homem, parece que ela, infelizmente, cedeu ao senso comum desconexo e neoliberal, além de invocar os chistes do autoritarismo das identidades dos egos. Eis um recorrente sintoma analítico, com relação ao problema de criar departamentos enclausurados, para distinguir psiquismo e vida social como esferas distintas.

Na era do ataque à razão e à democracia pelos fascistas de plantão, o debate público se tornou a extensão do tosco papo de botequim com pretensas cores de intelectualismo!

É preciso contextualizar a participação da mão-de-obra feminina no mercado de trabalho e a estratégia dos capitalistas de reduzir custos com a diminuição de salários dos trabalhadores em geral, e em particular, das trabalhadoras. No moto-contínuo trator do capitalismo, temos a alienação do sujeito a uma vida sem sentido para si, além de descentrado de qualquer racionalidade ou sensibilidade.

Ora, dizer que uma família é como ter uma empresa, afirmação de Maria Homem, além de ser um estereotipado senso comum, é reforçar a atuação glamourizada das perversões do capital contra os trabalhadores, independentemente do sexo!

Nesta entrevista, não há uma única menção crítica real da entrevistada à sociedade de classes, imposta pelos desígnios no capital e, de forma impune, tudo fica na esfera da subjetividade do sujeito.

Enfim, segue o pensamento único da apologia do capital que reina de forma hegemônica, sem questionamentos reais, mesmo com todas as desgraças da pandemia provocado por seus perversos arautos.


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Para ler a entrevista completa ao UOL/Universa CLIQUE AQUI


sexta-feira, 4 de setembro de 2020

A MISÉRIA DA ESQUERDA: NO RIO DE JANEIRO, O SEMBLANTE DO AUTORITARISMO IDENTITÁRIO É A VOZ DA POLÍTICA DO EGO ACIMA DE TUDO

 


Após pontapé no deputado federal Marcelo Freixo que buscou uma promissora aliança com o PT/RJ, o seu próprio partido, o PSOL/RJ, melou tal empreitada e abriu mão de uma possível união do campo das esquerdas para construção de um “campo democrático” visando a prefeitura carioca no primeiro turno das eleições deste ano. 

Frente a este autoritarismo narcisista partidário, o PSOL/RJ agora lançou a candidatura de uma cover do espólio do neo-ícone Marielle Franco, a atual deputada estadual, Renata Souza. Mais uma das "marielles" genéricas da linha de produção do estereótipo político que vem se tornado "padrão" nas esquerdas brasileiras. Por sinal, a direita, como sempre, mimetizadora dos feitos das esquerdas, vem também adotando as práticas "standard" com suas "marielles de direita” e, naturalmente, acampado o mesmo “discurso empoderado da lacração”, ou seja, o chiste autoritário identitário. 

O histriônico discurso da “representatividade identitária”, apesar do ar angelical, se esconde em meandros do discurso capitalista. O estratagema empregado é o "foco na narrativa e muito drama de vida", bem ao gosto do estilo estadunidense de "crescer por si mesmo" no mundo do capital! Vamos lembrar o que vem se adotando o perfil obsessivo do esquerdismo fluminense (por sinal,  o mesmo vem criando metástase de um “padrão nacional”!) com uma espécie de "mariellização" estereotipada com suas narrativas pessoais romantizadas para adoçar o coração do eleitor. 

Quanto mais trágica a "narrativa de vida" do sujeito, maior será o potencial eleitoral! Nada mais torpe do que uma mediocridade esdrúxula que vem tomando conta das esquerdas de indistintos partidos! Os projetos pessoais “empoderados” estão reproduzindo uma práxis de uma esquerda capturada pela lacração narcísica neoliberal e, rasteiramente, insiste em sufocar a racionalidade política e os projetos coletivos de sociedade.  

Por falar em bizarrices, mais curioso ainda é quando a chapa do PSOL/RJ recruta como vice-prefeito um coronel reformado da Política Militar para disputar a prefeitura do Rio de Janeiro. Claro, vão dizer que ele é um "PM mansinho e bonzinho". Okay, somos otários, vamos acreditar nisto tudo e que a Terra é quadrada! A questão não é questionar a idoneidade do coronel, mas questionar a lógica de se colocar tal sujeito para disputar uma chapa para cargo majoritário. Todavia, para quem adora gritar tanto contra a "militarização da polícia" e seus excessos, se torna paradoxal ter um “militar” como vice. Ademais, não seria estranho parir um pastor ou similar no posto. Aliás, foi-se o tempo que as esquerdas eram coerentes com seus discursos e, agora, a hipocrisia identitária ganha terreno. 

Por fim, esqueçamos toda a racionalidade da estratégia política diante da hegemonia da extrema direita. Imbuídos com premissas de que a “representatividade egóica do sujeito” é a salvação da lavoura, as esquerdas vão com tudo com a demagogia do romantismo narcisista barato contra os milicianos do Rio de Janeiro. A miséria política das esquerdas é o horizonte desastroso diante da realidade dos fatos. Uma esquerda perdida em discursos fúteis, umbilicais e delirantes, sem força para se colocar como real opção de governo, aderentes à economia neoliberal de um Brasil perdido no tempo, capturado pelo jaguncismo fascista e, para sacramentar, perdeu a vergonha de contabilizar o número de mortos de uma devastadora pandemia.


domingo, 30 de agosto de 2020

O CAVALO DE TRÓIA E O ARDILOSO SERPENTÁRIO DO CAPITAL

        

         Não há dúvida que o identitarismo é um cavalo de Tróia dentro das esquerdas. Munidos pelo ressentimento de origem e alucinados pelo deslumbramento do capital, os ativistas identitários utilizam-se da moralidade e da cultura do senso comum, para moldar uma realidade que se forja a partir de uma distorção do real e que é regurgitada com elementos irracionais de entendimento de mundo.

Em plena pandemia causada pelo contágio do novo coronavírus, o Sar-Cov-2, quando o capital está em mais uma crise sistêmica, uma oportunista e sintomática onda "antirracista" emergiu usando a pele estigmatizada de um segmento dos trabalhadores, para  impulsionar o salvamento da pele escamosa dos capitalistas. Curiosamente, as críticas diante da ação genocida do capital que ignorou a pandemia e expôs milhões de trabalhadores à uma doença ainda sem cura, foram tão insuficientes que passaram quase que  desapercebidas. Todavia, o contágio de causas identitárias tomou conta do debate público, criando polêmica e desviando o foco das responsabilidades dos capitalistas frente à pandemia.

Nada é tão curioso quanto o apoio midiático a causas "boazinhas", moralmente úteis, para fazer espuma e distorcer a realidade dos fatos. Se a suposta "causa cidadã" não oferece riscos ao capital, a burguesia tende a abraçar, patrocinar e moldar a seu bel-prazer.  Afinal, exceto os fascistas por convicção, quem seria contra a proteção de nichos de suposta "representação minoritária", como a "mulher" ou o "negro" numa sociedade? Esses elementos abstratos e genéricos de um discurso rasteiro, impregnado de um vitimismo social, ganham uma superdimensão ideológica na guerra cultural imposta pelo capital e pela hegemonia do pensamento autoritário neoliberal.

Ninguém nega o quanto a questão racial é intrínseca a qualquer sociedade, com seus efeitos nocivos, a cada uma delas. Todavia, em plena ascensão da extrema direita nas democracias mundiais, promover um ataque às esquerdas se tornou mais interessante a partir de dentro das próprias esquerdas, impulsionando o típico motor da direita: a exploração do elemento moral. Um grande "golpe de mestre": fragilizar de vez as esquerdas utilizando-se da abdução de seus próprios membros!

            Num passe de mágica pandêmica, vem a "onda identitária racial" para atacar o novo vilão do “planeta capital”, a "esquerda branca". Pasmem! Nas trevas dos estratagemas burgueses, inventou-se o mote da tal "esquerda branca", para se posar como o novo bicho-papão que, sorrateiramente, assume um protagonismo bizarro diante do rol da "vilania mundial" e protege todos os financiadores capitalistas de movimentos e ativistas identitários. Nesta prepotente lógica, o problema então seria que a “esquerda branca” não se interessaria pelos problemas étnicos e carecia então de um novo grupo hegemônico da “política de esquerda” proveniente do Olímpio africano de pele negra. O surrealismo da premissa megalomaníaca só não é maior do que o fanatismo dos ativistas que exalam suas verborragias maniqueístas infanto-juvenis sem pudores.

Na loucura descarrilhada identitária da promoção de nichos exóticos dentro da estrutura social, a ideologia em prol do capital se manifesta explicitamente: os capitalistas deixam de ser os inimigos dos trabalhadores, mas    assumem a idealização do genérico mito do "homem branco", cuja sexualidade é o desejo de atração por mulheres! Simplicidade tão patética quanto a mediocridade de acreditar que o capitalismo se importa realmente com o tom de pele de seu servo assalariado e submisso às condições de trabalho imposta pelo patronato. Como é possível que as esquerdas impulsionem tamanho disparate e se imbecilizem com um discurso infantil do jardim do sanatório?

O fenômeno da promoção das "identidades" não é novo, mas tomou contornos mais agressivos nos anos 2010 no cenário mundial e, claro, com reflexos no Brasil. A promoção de um patológico narcisismo sociocultural foi um dos estratagemas do capital para ampliar a competividade fratricida entre os trabalhadores e quebrar as suas resistências na organização solidária contra a exploração capitalista.

As esquerdas foram usadas como "barriga de aluguel" de grupos com estratagemas protofascistas e, agora, elas se veem sendo devoradas pela metástase do identitarismo, cujo mote é a desconstrução da ideia de luta de classes e a implantação da demagogia do empoderamento do sujeito egóico, abduzido pelas maravilhas do "livre mercado". As esquerdas se encontram cada vez mais desunidas e fragmentadas pelas fantasias de um ativismo cego, narcísico e oportunista, resultando na promoção do próprio desvairado ego. Um sintoma tresloucado do delírio infanto-juvenil do atual momento das esquerdas é a glamourização de tagarelas oportunistas de Youtube que vêm se posicionado como referências "intelectuais" de uma esquerda cada vez mais desorientada, abobalhada e irracional.

A classe deu lugar à mitologia eugenista da pureza racial às avessas. Não mais o branco seria cor da "civilização", mas todos aqueles com peles "não-brancas" pertencentes à uma ancestralidade divinal da "Mãe África", o idílico "verdadeiro berçário" da natureza racial. Os mitos dão combustível à ideologia neoliberal do empreendedorismo do gueto racial, ou seja, o sujeito que "se faz por si mesmo" dentro de uma sociedade protagonista de um suposto "racismo estrutural". O romantismo típico do enredo hollywoodiano é sedutor e captura a subjetividade de sociedades destroçadas pelos efeitos nefastos da carnificina neoliberal.

No Brasil, é visível que o irrealismo e o anacronismo são elementos que estão sendo usados fortemente para o controle social por uma burguesia perversa e genocida. Além de promover a extrema direita bolsonarista, os tentáculos dos capitalistas promovem outros grupos supostamente à "esquerda" do espectro político, os identitários. Assim, os donos do grande capital, em ambas as pontas, podem controlar tanto o campo de uma direita mais liberal e reformista, quanto da "esquerda reformista". Os discursos e os estratagemas de ambos os grupos, extrema direita e identitários, são da mesma matriz: o apelo ao moralismo como fonte primária que deve ser explorada à exaustão!

Acuadas e sem um programa alternativo do qual possam se valer contra a hegemonia da extrema direita e seus interlocutores, as esquerdas, agora, são atacadas internamente, pela horda furiosa da alienação identitária que apenas enxerga elementos morais, como os constituintes dos problemas sociais. O capital consegue parir milagres!

No Brasil abduzido desde as infames "jornadas de junho" de 2013, os ovos do serpentário da direita golpista de 2016 eclodiram e deram origem às facções bolsonaristas. Da mesma forma, os ovos do serpentário das esquerdas começam a se abrir, com suas crias no identitarismo protofascista, bem dentro dos "ninhos esquerdistas".

Uma lição não deve ser esquecida: se as crises do capital são sistêmicas, a força da gênese mutante dos estratagemas da burguesia capitalista é de uma criatividade de sobrevivência tão hercúlea que desafia qualquer natureza supostamente predestinada dos fatos.

 

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Wellington Fontes Menezes (Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense/UFF)

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

ATACAR SEM PAUTAR É ATINGIR O QUE NÃO SE VÊ!

         

            Antes de tudo, gostaria de dizer do meu apreço por Christan Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP, cuja produção científica ultrapassou os muros da Cidade Universitária. Dunker, o qual respeito pela qualidade do seu trabalho, surpreendeu-me ao ler no "Blog da Boitempo", o seu artigo tão equivocado, desnecessário e ressentido para atacar, sabe-se lá quem, de forma indiscriminada, que ele rotulou de "esquerda".

No artigo em questão, entre os fatos citados, os quais são uma colcha de retalhos típicos de atitudes de centros acadêmicos universitários, com suas birras de sempre, sobressaltou-me Dunker invocar um oportunista de Youtube, Jonas Manoel, como uma espécie de "interlocutor de Marx". Daí foi chutar o pau da barraca da alucinação! Menos, bem menos, Prof. Dunker!

A partir da velha questão do que seria a "esquerda", esta vulgata genérica que mais parece um cestão de frutas de diversos formatos e gostos, se faz necessária a pergunta para Dunker: "Qual esquerda"? Será que Dunker outorga a todos os oportunistas da internet, destiladores de irracionalismos esdrúxulos para encherem os bolsos e tagarelarem senso comum ao estilo papo de boteco, embutidos em egos patológicos, com o irrestrito selo de "esquerda"? Afinal, para quem foi direcionada a crítica de Dunker?

Alguém que entende razoavelmente das estruturas do capital, deve saber que não se trata do "ódio ao dinheiro", mas como ele circula e se concentra, de forma tão desigual e perversa, numa sociedade capitalista, pautada em consumismo psicótico e pobreza extrema.

Dunker já escreveu artigos muito melhores e  instigantes. Este foi um dos mais atípicos e infelizes. Enfim, melhor sorte no próximo, Prof. Dunker!

 

TRUMP NÃO FOI UM (NOVO) ACIDENTE DA HISTÓRIA. FOI UMA ESCOLHA!

  Quase todas as tentativas de explicação que surgem do campo de uma Esquerda, magnetizada pelo identitarismo, é de uma infantilidade atroz,...