Fazer um “balanço de final de ano" é como jogar daquelas partidas de futebol onde o time de tão fraco, só espera não ser goleado e o empate, como dizia a anedota atribuída ao folclórico ex-técnico e jogador, Mário Jorge Lobo Zagallo, já seria um bom resultado. Mas o que dizer de um ano tão destrutivo e desalentador como foi o de 2020?
Primeiramente, uma
coisa é certa: quando se aposta no erro, o resultado não poderá ser outro,
senão a consagração da lambança! Nada repercutiu mais em nossas vidas do que um
vírus que alterou nossos comportamentos, atitudes e escancarou o que tem de
pior nos seres humanos: o novo coronavírus causador da famigerada COVID-19.
Muitos de nós já estamos exauridos de ouvir falar do vírus que ceifou milhões
de pessoas pelo mundo e nos nossos arredores. Porém, ignorar o vírus não faz
ele e seus efeitos desaparecerem diante dos nossos olhos entediados. No nosso
Brasil que enfrenta a pandemia com a resistência de um prego fincado na
gelatina, se encontra hoje na vice-liderança mundial tanto em número de
contaminados, quanto em número de mortos. Parabéns pela nossa incompetência e
descaso governamentais! Tudo que foi feito para dar errado, simplesmente, deu
errado! Incrível, não é? A pergunta que muitos fazem com menosprezo diante de
números alarmantes de contágios e óbitos: “E daí?”.
Em segundo lugar, o que
mais impressiona em momentos de crise é o que define qual nível de
singularidade de sociedade vivemos e elaboramos nossas ações. O comportamento
diante de situações adversas diz mais sobre o sujeito do que a narrativa que
ele elabora sobre si mesmo. As famílias ficaram de alguma forma mais
distanciada uma das outras, os rostos ficaram mais mascarados do que
habitualmente e agregados com novos hábitos de conduta pessoal e coletiva.
Desde as primeiras mortes até hoje, as pessoas tomaram algum tipo de medida de
proteção individual ou, simplesmente, o abuso da cristalina indiferença ou
negacionismo sobre os fatos. Nestes detalhes tão peculiares, os aspectos
comportamentais orientam os laços sociais que interagem nos agrupamentos
humanos. Neste contexto, outra pergunta que merecemos fazer: “Qual é o papel
social de cada um diante do outro?”.
Em terceiro lugar, em
um mundo cada vez mais frágil de elementos que sustentam simbolicamente a
condição humana, como é possível caminhar e ter a coragem de não fraquejar
diante das intempéries? Em momentos de epidemias, a morte é mais presente no
imaginário popular. A reação à ela oscila entre a paranoia, o ceticismo e o
sarcasmo. A visão que cada um tem sobre seus íntimos valores morais constitui a
amálgama que irá fomentar a ação do sujeito perante a iminência da morte. Em
uma sociedade que assiste mortes diárias por uma doença como a COVID-19, cada
dia que se passa, a comoção se dilui e o que incomodava vira coisa rotineira.
Nós temos a incrível capacidade de adaptação às mais diferentes situações. Aceitamos com mais passividade uma situação
degenerada do que buscarmos imprimir uma mudança significativa à ela.
Em quarto lugar, a rebeldia se mostra como uma brincadeira de criança e a posição de mudança social virou apenas um novelo romântico todo amontoado e embolorado. O nível de rebeldia hoje se dá na transgressão dos costumes dos comezinhos moralistas e não as grandes transições sociopolíticas. Em tempo de COVID-19, por exemplo, jovens aceitam ouvir qualquer coisa que emite ruído sonoro em festas clandestinas (ou não) em plena pandemia para se contaminarem e levarem o vírus aos seus familiares. Outra postura curiosa é recusar usar máscara de proteção individual ou usá-la, propositadamente, de modo incorreto colocando-a como se fosse um elemento de “fraqueza” ao exibir sua condição de “protegido”. Percebe-se que a transgressão se transformou em um elemento de bricolagem de um narcisismo infanto-juvenil e não mais de um agregador de desejos substanciais de mudança social.
Por fim, o quinto
tópico a ser destacando se reduz no gozo da perversão que aflora em sociedades
fragmentadas e não conseguem construir verdadeiros laços de solidariedade. O
individualismo se tornou hoje um elemento patológico, fanatizado e
autodestrutivo. Valores para além do ego do sujeito são satirizados em nome do
mundo do próprio umbigo. A ação hedonista dos sujeitos aglomerando-se em
praias, bares e ruas em plena pandemia expôs o nível da barbárie que a
negligência do Poder Público patrocina numa sociedade cujos valores festejados
são plasmados na ganância, no nível de autossatisfação imediata e na
indiferença perante os projetos coletivos sociais. Neste ambiente, os lações
sociais viram apenas adesismos oportunistas de uns com os outros impregnando
uma fragilidade no tecido social tão volátil que tem duplo impacto no sujeito:
o vazio existencial individualizado e a depreciação das relações sociais.
Nesta atmosfera, diante
das fragilidades dos laços sociais e da alteridade, não é de se espantar que o
país, voluntariamente, em 2018, entronou na presidência um ser tão grotesco,
ignorante e abjeto para representar uma nação que se encontra em transe
coletivo desde 2013. Logo, diante do
fatídico ano de 2020, não podemos nós dar o luxo de esquecer suas nefastas consequências:
adentramos no abismo que construímos com ignorância, estupidez e violência
diante de um teatro de absurdos consagrados como “verdades” postuladas na mídia
e em redes sociais.
Vamos ser bem sinceros
e objetivos: Não, não foi nenhum microrganismo como um vírus pandêmico que
causou tantos destroços em nossa sociedade, mas nossa própria incapacidade de
nos constituirmos como espécie humana perante a complexa arquitetura social. A
ação virótica do vírus é de alta destrutividade, mas a organização de uma
sociedade primada pela naturalização das disparidades sociais é mais letal do
que qualquer doença contagiosa. Ao abandonarmos os mínimos valores que regem a
organização social com solidariedade, igualdade socioeconômica e espírito
crítico, aceitamos um horizonte de desgraças e, pior ainda, não nós
responsabilizamos por nossas próprias ações sejam elas pessoais ou coletivas.
O ano 2020 foi
tragicamente exemplar. Nossas feridas ficaram todas expostas, além de nossas
ignorâncias, nosso desapreço com a vida alheia, nossas fragilidades e
monstruosidades subjetivas e objetivas enquanto sujeitos sociais. Naturalmente,
temos que fazer justiça: assistimos também a grandiosa ação de trabalhadores
heroicos anônimos que dignificaram a insensata condição humana na batalha pela
vida daqueles que estiveram e estão na linha de enfrentamento da epidemia, seja
em recintos hospitalares, seja em ambientes que possibilitaram a manutenção da
necessária sociabilidade. Certamente, são estes os bravos trabalhadores que
merecem todo o respeito social e não patéticos “ídolos pop” que exaltam
boçalidades na mídia e nas redes sociais. Exaltemos a luta daqueles que
batalham contra o vírus e não aqueles ignóbeis que ajudam o vírus a proliferar!
Afinal, o que podemos
aprender com tudo isto? Ao olharmos ao espelho e compreendermos a respeito da
nossa finitude e fragilidade diante da vida será o iniciar de uma longa e
tortuosa jornada por nossas mais íntimas percepções. Somos sujeitos sociais e
elaborados diante de uma sociedade que disfarça com muita rapinagem os
mecanismos ideológicos que transformam seres humanos em narcísicas marionetes
sociais autofágicos que pouco acreditam em si mesmos e no sentido da própria
vida.
Em 2020 eclodiu o que
há de pior em nosso meio social, mas podemos fazer diferente disso? A resposta é sempre positiva diante das
possibilidades transformadoras da razão, da sensibilidade, da alteridade e do
vigor do espírito criativo do ser humano, mas a questão central é: será que
queremos ser melhores do que realmente nos esforçamos para nos degenerarmos com
tanta displicência suicida?
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