Em
plena pandemia causada pelo contágio do novo coronavírus, o Sar-Cov-2, quando o
capital está em mais uma crise sistêmica, uma oportunista e sintomática onda
"antirracista" emergiu usando a pele estigmatizada de um segmento dos
trabalhadores, para impulsionar o
salvamento da pele escamosa dos capitalistas. Curiosamente, as críticas diante
da ação genocida do capital que ignorou a pandemia e expôs milhões de
trabalhadores à uma doença ainda sem cura, foram tão insuficientes que passaram
quase que desapercebidas. Todavia, o
contágio de causas identitárias tomou conta do debate público, criando polêmica
e desviando o foco das responsabilidades dos capitalistas frente à pandemia.
Nada
é tão curioso quanto o apoio midiático a causas "boazinhas",
moralmente úteis, para fazer espuma e distorcer a realidade dos fatos. Se a
suposta "causa cidadã" não oferece riscos ao capital, a burguesia
tende a abraçar, patrocinar e moldar a seu bel-prazer. Afinal, exceto os fascistas por convicção,
quem seria contra a proteção de nichos de suposta "representação
minoritária", como a "mulher" ou o "negro" numa
sociedade? Esses elementos abstratos e genéricos de um discurso rasteiro,
impregnado de um vitimismo social, ganham uma superdimensão ideológica na
guerra cultural imposta pelo capital e pela hegemonia do pensamento autoritário
neoliberal.
Ninguém
nega o quanto a questão racial é intrínseca a qualquer sociedade, com seus
efeitos nocivos, a cada uma delas. Todavia, em plena ascensão da extrema
direita nas democracias mundiais, promover um ataque às esquerdas se tornou
mais interessante a partir de dentro das próprias esquerdas, impulsionando o
típico motor da direita: a exploração do elemento moral. Um grande "golpe
de mestre": fragilizar de vez as esquerdas utilizando-se da abdução de
seus próprios membros!
Num passe de mágica pandêmica, vem a
"onda identitária racial" para atacar o novo vilão do “planeta
capital”, a "esquerda branca". Pasmem! Nas trevas dos estratagemas burgueses,
inventou-se o mote da tal "esquerda branca", para se posar como o
novo bicho-papão que, sorrateiramente, assume um protagonismo bizarro diante do
rol da "vilania mundial" e protege todos os financiadores
capitalistas de movimentos e ativistas identitários. Nesta prepotente lógica, o
problema então seria que a “esquerda branca” não se interessaria pelos
problemas étnicos e carecia então de um novo grupo hegemônico da “política de
esquerda” proveniente do Olímpio africano de pele negra. O surrealismo da premissa
megalomaníaca só não é maior do que o fanatismo dos ativistas que exalam suas verborragias
maniqueístas infanto-juvenis sem pudores.
Na
loucura descarrilhada identitária da promoção de nichos exóticos dentro da
estrutura social, a ideologia em prol do capital se manifesta explicitamente:
os capitalistas deixam de ser os inimigos dos trabalhadores, mas assumem a idealização do genérico mito do "homem
branco", cuja sexualidade é o desejo de atração por mulheres! Simplicidade
tão patética quanto a mediocridade de acreditar que o capitalismo se importa
realmente com o tom de pele de seu servo assalariado e submisso às condições de
trabalho imposta pelo patronato. Como é possível que as esquerdas impulsionem
tamanho disparate e se imbecilizem com um discurso infantil do jardim do
sanatório?
O
fenômeno da promoção das "identidades" não é novo, mas tomou
contornos mais agressivos nos anos 2010 no cenário mundial e, claro, com reflexos
no Brasil. A promoção de um patológico narcisismo sociocultural foi um dos
estratagemas do capital para ampliar a competividade fratricida entre os
trabalhadores e quebrar as suas resistências na organização solidária contra a
exploração capitalista.
As
esquerdas foram usadas como "barriga de aluguel" de grupos com
estratagemas protofascistas e, agora, elas se veem sendo devoradas pela
metástase do identitarismo, cujo mote é a desconstrução da ideia de luta de
classes e a implantação da demagogia do empoderamento do sujeito egóico,
abduzido pelas maravilhas do "livre mercado". As esquerdas se
encontram cada vez mais desunidas e fragmentadas pelas fantasias de um ativismo
cego, narcísico e oportunista, resultando na promoção do próprio desvairado
ego. Um sintoma tresloucado do delírio infanto-juvenil do atual momento das
esquerdas é a glamourização de tagarelas oportunistas de Youtube que vêm se
posicionado como referências "intelectuais" de uma esquerda cada vez
mais desorientada, abobalhada e irracional.
A
classe deu lugar à mitologia eugenista da pureza racial às avessas. Não mais o
branco seria cor da "civilização", mas todos aqueles com peles
"não-brancas" pertencentes à uma ancestralidade divinal da "Mãe
África", o idílico "verdadeiro berçário" da natureza racial. Os
mitos dão combustível à ideologia neoliberal do empreendedorismo do gueto
racial, ou seja, o sujeito que "se faz por si mesmo" dentro de uma
sociedade protagonista de um suposto "racismo estrutural". O
romantismo típico do enredo hollywoodiano é sedutor e captura a subjetividade
de sociedades destroçadas pelos efeitos nefastos da carnificina neoliberal.
No
Brasil, é visível que o irrealismo e o anacronismo são elementos que estão
sendo usados fortemente para o controle social por uma burguesia perversa e genocida.
Além de promover a extrema direita bolsonarista, os tentáculos dos capitalistas
promovem outros grupos supostamente à "esquerda" do espectro político,
os identitários. Assim, os donos do grande capital, em ambas as pontas, podem
controlar tanto o campo de uma direita mais liberal e reformista, quanto da
"esquerda reformista". Os discursos e os estratagemas de ambos os
grupos, extrema direita e identitários, são da mesma matriz: o apelo ao
moralismo como fonte primária que deve ser explorada à exaustão!
Acuadas
e sem um programa alternativo do qual possam se valer contra a hegemonia da
extrema direita e seus interlocutores, as esquerdas, agora, são atacadas
internamente, pela horda furiosa da alienação identitária que apenas enxerga
elementos morais, como os constituintes dos problemas sociais. O capital
consegue parir milagres!
No
Brasil abduzido desde as infames "jornadas de junho" de 2013, os ovos
do serpentário da direita golpista de 2016 eclodiram e deram origem às facções
bolsonaristas. Da mesma forma, os ovos do serpentário das esquerdas começam a
se abrir, com suas crias no identitarismo protofascista, bem dentro dos
"ninhos esquerdistas".
Uma
lição não deve ser esquecida: se as crises do capital são sistêmicas, a força
da gênese mutante dos estratagemas da burguesia capitalista é de uma
criatividade de sobrevivência tão hercúlea que desafia qualquer natureza
supostamente predestinada dos fatos.
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Wellington Fontes Menezes
(Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal
Fluminense/UFF)
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