terça-feira, 17 de novembro de 2020

O BRASIL PLASMADO NAS URNAS: UM BREVE BALANÇO DAS ELEIÇÕES NA PANDEMIA


Em meio à maior crise sanitária de todos os tempos, o Brasil resolveu insistir em fazer a manutenção do processo eleitoral municipal e ignorar os quase seis milhões de contaminados pelo novo coronavírus, Sars-Cov-2. Na mesquinhez da vida cotidiana bancada por uma elite insensível ao sofrimento da grande maioria da população, os interesses políticos imediatos se tornam superiores aos das vidas humanas. As eleições foram decorrentes de grandes aglomerações, com candidatos em campanha ao longo das últimas semanas e da movimentação deste domingo eleitoral.  Com o final do primeiro turno, as eleições na pandemia mostraram alguns sintomas que serão pontuados a partir de um breve esboço do panorama da política nacional do ponto de vista da arquitetura de poder constituído pelos municípios. Em todo o país, com máscara, álcool em gel e título na mão, o eleitor foi fazer a sua escolha de prefeitos e vereadores, marcando elementos norteadores de algumas considerações sobre a política imediata brasileira.

O primeiro ponto, no quadro nacional, notadamente, o grande perdedor foi Jair Bolsonaro. Com exceção do Rio de Janeiro e Fortaleza, os candidatos apoiados por Bolsonaro não decolaram em nenhuma outra capital. Os casos do Rio de Janeiro e Fortaleza, os candidatos bolsonaristas foram para o segundo turno das eleições de forma sofrível e baixa votação que se esperava de antemão. Muitos dos candidatos apoiados por Bolsonaro, como Celso Russomano, em São Paulo, esconderam ou disfarçaram, ao longo da campanha, o apoio dado daquele que foi o maior responsável pelas 165 mil mortes por COVID-19 neste país. Dois anos após a grande explosão do eleitorado extremista de direita que impulsionou a escolha de Bolsonaro ao Palácio do Planalto, a questão mais importante desta eleição é o fato das candidaturas ligadas à extrema-direita demonstrarem estar em aparente refluxo eleitoral no país. Em 2020, o resultado das urnas mostrou uma perda de fôlego destas candidaturas que apoiam o extremismo político como forma de ampliar o primitivismo da sociabilidade brasileira. Todavia, isto não significa que teremos tempos com ares democráticos para os próximos pleitos.

Apesar desta perda de fôlego das candidaturas extremistas, observou-se, em segundo ponto, ainda na onda das eleições de Bolsonaro e sua truculência fascistizante refletida nas eleições de 2018, o ressurgimento de diversas candidaturas de militares, forças integrantes de polícias, delegados, juízes e militantes ligados às demandas da segurança pública. Diante da guinada ultraconservadora no debate político em parcela significativa da sociedade, tais candidaturas tiveram grande visibilidade e, como se previa, foi quase nulo o real debate político. Este é um nicho que irá perdurar enquanto ainda tiverem fôlego os estratagemas bolsonaristas, na sociedade. Fato preocupante é os principais partidos de esquerda, PT e PSOL, oferecerem este tipo de candidatos para o eleitorado, como é o caso da esdrúxula candidatura petista da Major Denice, em Salvador.

O terceiro ponto, a onda identitária ampliou-se ainda mais nesta eleição. Em nome de uma maior representatividade, foram promovidas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), as cotas partidárias para impulsionar “candidaturas negras”. Contudo, de forma genérica, em nome da representatividade, houve uma oferta dessas candidaturas e que tornou o debate da política mais maniqueísta, com a construção de um falso “trade off” entre negros versus brancos. Do ponto de vista da estratégia política, com a onda identitária forte, da esquerda à direita, muitos candidatos reivindicaram o misticismo da “ancestralidade negra” para si, em busca de se colocarem como herdeiros transcendentais da tradição da “cultura negra”. Com tal estratégia bem definida, tais candidaturas buscaram angariar simpatia e votos para uma causa que, na prática, se tornou recurso de um discurso unilateral e personalista. Na esteira das identidades, não faltou a exaltação à “força da mulher”, com as candidaturas “feministas” e, além delas, as candidaturas “transgêneras”. Apesar de corresponder a 50,6% da população brasileira, a questão da candidatura das mulheres merece destaque quanto à participação do percentual de prefeituras conquistadas, 12,2% somente no primeiro turno, conforme dados do TSE.

No quarto ponto, é perceptível uma onda de pessoas que ingressam na política, buscando lentamente substituir elementos mais conservadores. Há uma tendência de algumas democracias ocidentais colocarem estes novos atores para administrarem o capital. Um exemplo patente desta premissa foram as eleições estadunidenses e, por sinal, com reflexos no Brasil, onde as candidaturas identitárias que se inspiram em ideologias neoliberais, ganham visibilidade social e são patrocinadas tanto pela grande mídia, quanto pelos grandes grupos empresariais fomentadores de campanhas eleitores. Vale lembrar que o simples fato destas candidaturas estarem reunidas em partidos de esquerda, não quer dizer que tais candidatos comungam de ideias mais pertinentes a uma esquerda clássica, com bases marxistas.

No quinto ponto, observa-se uma eleição paradigmática em São Paulo. Apoiado pelo governador João Dória, o atual prefeito, Bruno Covas, foi para o segundo turno, com quase um terço dos votos válidos e disputará a prefeitura com Guilherme Boulos, do PSOL. Fato pertinente foi o mísero percentual de um pouco mais de 8% do leniente candidato do PT, Jilmar Tatto. Com erros estratégicos grotescos, em São Paulo, o PT amargou a pior votação dos últimos tempos na capital paulista, cidade esta que o partido governou em três mandatos: com Luiza Erundina (1989-1992), Marta Suplicy (2001-2004) e Fernando Haddad (2013-2016). Sem buscar uma coalização com os partidos de esquerda na capital paulistana, PT e PSOL disputaram os votos do eleitorado. Boulos, com mais carisma midiática do que o insosso Tatto, logo ganhou musculatura em sua candidatura e angariou tanto os votos do eleitorado petista e simpatizantes do partido, quanto o campo mais progressista não-atrelado ao petismo. Com pouco mais de 20% dos votos válidos, Boulos consolidou-se como uma liderança ascendente na política paulistana à esquerda. Todavia, caso deseje, de fato, ganhar a prefeitura da conservadora São Paulo, terá a missão de se distanciar das querelas identitárias de uma classe média, pretensiosamente ilustrada, do seu partido e voltar-se ao campo da realidade, buscando votos das periferias e dos trabalhadores.

O sexto ponto poderá ser observado na fragmentação da unidade das esquerdas. Tanto em São Paulo, quanto no Rio de Janeiro, a desunião das esquerdas foi flagrante. No caso do Rio de Janeiro, Benedita da Silva do PT e Renata Souza do PSOL, naufragaram suas candidaturas em disputas fratricidas. Em São Paulo, nem mesmo a direção do PT acreditava que Tatto fosse para o segundo turno e, mesmo assim, insistiu com a candidatura, numa cena vexatória em termos de eleições majoritárias. Sem nenhum aceno real à candidatura de Boulos, o próprio PT contribuiu para sair do protagonismo do atual momento político. Há um saldo positivo em meio ao caos eleitoral para o PT, em ternos de votos para a vereança, onde conseguiu ter a liderança em número de votos e ainda obteve a honraria de ter o veterano Eduardo Suplicy como o vereador mais votado de São Paulo.  

O sétimo ponto desta análise, no calor do momento, visa a eleição em aberto para a presidência em 2022. Apesar da derrota sensível das alas bolsonaristas nas eleições deste ano e a perda de popularidade e de rumo do seu governo, Bolsonaro segue com uma parcela fiel do eleitorado que, atualmente, se encontra em um percentual de 30%, segundo pesquisas mais recentes. Importante destacar que os principais partidos da órbita da extrema-direita com laços estreitos com o bolsonarismo, segundo dados consolidados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de prefeitos eleitos no primeiro turno, tem-se o PSL, o Republicanos, o PSC, o Patriotas e o PRTB que, juntos, conquistaram cerca de 8,6% das prefeituras do país. Todavia, é importante destacar a ampliação das prefeituras do conjunto destas cinco siglas que passaram de 244 prefeituras em 2016, para quase o dobro, 467, em 2020.

A partir deste percentual, o oitavo ponto se revela com grande preocupação e requer maior atenção. O campo das esquerdas, aqui destacando os três principais partidos com representação na Câmara dos Deputados e na conquista de prefeituras: o PT, o PSOL e o PC do B, juntos conquistaram 229 prefeituras somente no primeiro turno destas eleições (sem a necessidade de um segundo turno), em um total de 5400 municípios. Este percentual significa apenas 4,2% de todo o conjunto dos municípios. Um aspecto é o recuo de 32% no número de prefeituras deste conjunto, o qual passou de 337, em 2016, para 229, em 2020. Somente o PT perdeu 75 prefeituras entre 2016 e 2020, ou seja, um recuo de quase um terço do seu mapa de administração nacional de municípios. Por outro lado, o crescimento das prefeituras conquistadas pelas siglas da extrema direita bolsonarista é significativo e representa praticamente o dobro das siglas à esquerda do espectro político. Tais números demostram os desafios de romper a bolha de mediocridade e conformista que se instalou no pensamento de esquerda brasileira atualmente. Em 2018, a subestimação da ascensão de Bolsonaro foi um exemplo da falta de estratégia do campo das esquerdas e do campo mais progressista. A decorrência de erros estratégicos que já datam desde 2013, diante dos protestos de inverno capturados pela direita, a qual culminou na derrubada da presidente Dilma Rousseff, possibilitou a maior ascensão do populismo da extrema direita da história do país. O reflexo da escalada do bolsonarismo da extrema direita no Brasil refletiu na explosão do número de assassinatos de candidatos nas eleições deste ano no país. Este ponto merece ser analisado com maior refinamento em outra oportunidade.

Um nono ponto que merece ser observado é o número de votos não válidos, ou seja, a somatória de abstenções ou ausentes, brancos e nulos. O reflexo direto da pandemia se fez presente nestes números, além do desinteresse popular pelas eleições. No Brasil, segundo o TSE, este percentual foi de 30,57% e, em particular, na cidade de São Paulo, 40,59%. Em termos comparativos, este número é deveras alarmante na cidade paulista, posicionando-a na primeira colocação geral entre os candidatos concorrentes à prefeitura, no pleito deste domingo, 15 de novembro. Trocando em miúdos, o grande vencedor das eleições em São Paulo foi o conjunto das abstenções, brancos e nulos!

E por fim, chega-se ao décimo ponto. O grande vencedor dessas eleições foram os partidos tradicionais da direita (MDB, PP, PSD, PSDB, DEM, PL e PTB) que juntos somaram 3417 prefeituras somente no primeiro turno das eleições de 2020. Número tão expressivos que corresponde a 63% de todos os municípios brasileiros! Diante desta realidade, a questão central é a escolha de um candidato aglutinador e que possa ampliar a massa de votos e ser competitivo para conquistar o eleitorado para a esperada sucessão de Bolsonaro.

Observando os dez pontos em destaque, sobressai-se uma predominância que ficou explícita ao logo da batalha do primeiro turno das eleições de 2020: nenhuma candidatura “puro sangue”, ou seja, totalmente composta por candidatos (titular e vice), no campo das esquerdas, sagrou-se vencedor em nenhuma cidade política ou economicamente com relevância no cenário nacional. Mais do que nunca, para o campo da esquerda e dos setores mais progressistas, é hora de baixar o salto da prepotência e ampliar a análise da conjuntura tendo em vista o arco de alianças políticas, caso deseje derrotar o desgoverno fascistóide de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.

Dentro de alguns dias, teremos o segundo turno das eleições com 57 cidades, incluindo 18 capitais, para definirem seus prefeitos, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife. São cidades com maior aporte populacional, político e econômico e, por sua vez, merecerá uma análise mais pormenorizada e, posteriormente, será elaborada e divulgada.

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