Nada provoca mais polêmica
gratuita do que mexer com a intimidade alheia. Assim como os mexericos sempre
são campeões de audiência, a Pós-modernidade deu um lustro blasé na fofoca, com ares de intelectualidade, para vigorosos e
flácidos debates nos cafés, happy hours
e alguns tediosos seminários acadêmicos. A invocação do sexo dos anjos se
tornou um fetiche em grande parte da intelectualidade acadêmica das humanidades,
embriagada pelo canto da sereia da representatividade, diante do altar
performático da santíssima trindade das identidades: sexo, gênero e raça.
O mundo pós-moderno, movido
pelas engrenagens do capital, conseguiu o seu maior feito: a promoção da
passividade social magnetizada pela crença irracional e narcisista, na
metafísica do neoliberalismo. Nesta maravilhosa esteira do capital, no “moinho
satânico” apontado por Karl Polanyi, sem uma mínima regulação estatal, tudo se
torna mercadoria e tudo tem um preço (para quem pode pagar, é claro!).
No deserto que movimenta o
cotidiano de sociedades fadadas a viverem de forma automatizada, a vida
líquida, apregoada por Zygmunt Bauman, é nada além do que a ideologia do
capital impregnada das mais articuladas formas, desde as concepções políticas,
passando pela frágil arquitetura econômica e aterrissando até mesmo no meio das
fantasias de alcova dos indivíduos.
Na lógica da atomização social,
o sujeito se torna indivíduo ao perder sua subjetividade e se transforma em
mero motor de alienações consumistas e da ignorância sistêmica. Adicionado a
este motor, temos a embreagem do narcisismo. Quanto mais o sujeito tenta
parecer "exótico", em um falso processo de individualidade, mais ele
se torna uma caricatura do modelo neoliberal de sujeitos: desvalidos de
conteúdos, embriagados de uma vida imediatista e esvaziada.
O interesse pela sexualidade é
tão remoto, quanto os labirintos da curiosidade humana sobre si e sobre o mundo.
Todavia, alguns pós-modernos querem “descobrir” a sexualidade, como se tudo fosse
alguma novidade parida a partir do século XXI, ignorando o passado e projetando
um véu de ineditismo que não condiz com a realidade. Seriam muitos destes
ativistas que buscam se autopromoverem com pretensos mecanismos sexistas, tão
inovadores como dizem, ou apenas marqueteiros a propagaram sensos comuns em
vídeos, com odores de charlatanismo do Youtube?
As redes sociais permitem que
muitos oportunistas ajam como “doutos” de conhecimento e se posam como
“professores” do senso comum, ministrando “aulas” sobre tudo, com conteúdos dos
quais nada dominam. O que se pode afirmar é que a dimensão da compulsão da
sexualidade na Pós-modernidade se tornou um grande mercado de fetichismos, na
busca frenética (e inútil) de preenchimento das crateras existenciais. Neste
campo de alta lucratividade, há diversas formas de exploração pelo capital,
para instigar fantasias e desejos de ávidos consumidores sedentos de algum “movimento
na vida”. Logo, é um velho lugar-comum falar sobre qualquer coisa a respeito de
sexualidade e, assim, conquistar consumidores. Ao deslumbrar incomensuráveis
lucros, os vendedores de ilusões sabem que, quanto maior é a polêmica, maior é encorajado
o desejo de mexerico do consumidor e, posteriormente, de inúmeras possibilidades
de aquisição de bens ou serviços.
Em um mundo adoecido por uma
pandemia de um vírus que provoca uma doença mortal, a COVID-19, e de um
capitalismo mais mortífero ainda, o debate público se plasmou em um reino do
infrutífero besteirol. Tudo para não fazer um único risco no espelho
monopolístico do capital que hegemoniza a colonização da ideologia dominante,
desde a queda do Muro de Berlim. Não é a toa que os novos eugenistas raciais,
os tais "antirracistas" utilizam o piegas estratagema do alucinógeno
"privilégio branco", dentro na nova quimera neoliberal que prega uma
panaceia de explicação do mundo, o “racismo estrutural”: todos os brancos
“geneticamente” seriam privilegiados e malvados e todos os negros seriam pobres
criaturas ingênuas, dóceis e passíveis de serem vitimas de todos os infortúnios
em suas vidas. Nesta profundidade da dimensão de um pires que comporta uma
xícara de alucinógeno, não haveria espaço para luta de classes, mas sim uma imortalizada
luta entre a eterna vítima negra e o garanhão branco doutrinador! Todavia, uma
pergunta se porta no ar para os tais ativistas identitários de alma mater negra: em sociedades cuja
presença negra seja ínfima ou nula, como explicar as diferenças sociais?
Derivado deste rocambole de
retóricas flácidas, regado com muita imaginação, surge os tais “estudos da
branquitude” no Brasil, como se fôssemos uma nação fundada por arianos que, por
si só, conduziram sua genética de malefícios, ao longo dos séculos, no
território tupiniquim. O espetáculo das caricaturas generalistas cria um teatro
da vitimização que confunde o espectador e empobrece o debate público. Nesta
esteira, os estudos acadêmicos também se tornam cada vez mais contaminados, com
este rol de bobagens do senso comum, turbinado com grande overdose de
imaginação preconceituosa e que não condiz com a realidade construída, em mais
de quinhentos longos anos, de história das desigualdades brasileiras.
De antemão é bom que fique bem
claro: não se nega a questão racial impregnada na sociedade brasileira, mas não
será com pseudoteorias fantasiosas, incrementadas pelo capital que serão
superadas chagas históricas. Nada disso seria apenas fumaça alucinógena
gratuita, se não tivesse propósitos bem claros. Diante desta exibição minúscula
de imaginação intelectual, as gritantes e assassinas diferenças sociais não mais
seriam devidas ao acirramento da luta de classes, cujo poder coercivamente
hegemônico está nas mãos das burguesias, mas tudo seria explicado por uma
palavra mágica: o "preconceito". Ao buscar uma narrativa fantástica
do irrealismo terraplanista para as desigualdades sociais, as explicações neoliberais
do identitarismo visam atacar conceitos consagrados do marxismo e da luta de
classes, preservando o capital e culpabilizando a percepção de cada indivíduo,
perante uma suposta percepção de realidade calcada na aparência subjetiva.
A chamada “guerra de
narrativas” é um nome pomposo para designar um perverso e caricatural
revisionismo sócio historiográfico que busca difundir conceitos irreais e do
senso comum, em substituição aos elementos consagrados em décadas de estudos e
pesquisas acadêmicas e, pior ainda, “cancelar” todos que não se ajoelharem ao fanatismo
das identidades e suas alucinações dos contos da Carochinha. Nesta matriz do
ilusionismo fantástico dos terraplanistas identitários, o mundo seria então
bipolar na narrativa pós-moderna das identidades: negros e racistas,
homossexuais e homofóbicos, mulheres e machistas do patriarcado. Enfim, o
terraplanismo identitário, cuja matriz é o universo umbilical da cultura de
superfície, se resume em uma míope visão de berçário de um mundo de sujeitos: o
“descolado” e o preconceituoso.
A simplória visão maniqueísta
de mundo da bricolagem identitária se torna tão insana, anti-intelectual e
fanatizada que apenas retroalimentam os mesmos fanáticos da extrema direita de
quem, supostamente, seriam adversários. Lembrar que os estratagemas dos dois
grupos, identitários e extrema direita, são tão parecidos que não seria exagero
dizer que acabam se tornando, taticamente, irmãos siameses. Ao esvaziar a visão
materialista histórica e dialética do mundo, ao abandonar a racionalidade, a
razão e a percepção intelectual, as estruturas neoliberais da pós-modernidade
reduzem o pensamento crítico a caricaturas de infantário de mundo.
Os arautos pós-modernos
recorrem às ambivalências panfletárias, cujos motes são ampliar polêmicas,
desenraizar um irracionalismo prejudicial ao desenvolvimento social, cultuar o
anti-intelectualismo e, ao mesmo tempo, posam de “influenciadores” e, o
principal, expurgam toda a culpa do capital por seu sistemático genocídio
seletivo sobre a Terra. Nesta lógica, ao pulverizar a "culpa
individual", o objetivo, no qual as grandes narrativas perdem sua força e o
indivíduo se torna o centro do universo, em detrimento dos projetos coletivos que
caducam por completo, visa o destino-manifesto do mercado reinando absoluto na
terra plana neoliberal, dando vazão ao ego narcisista do
eu-empreendedor-de-si-mesmo.
Quem fomenta tanta paranoia
obsessiva narcisista? Quem lucra, sem cessar, bilhões em plena pandemia, onde
milhões de vidas estão sendo devastadas? A quem interessa o debate do sexo dos
anjos? Quem patrocina a estupidez dos fetiches periféricos e as histerias
narcísicas? São os mesmos articuladores que sabem muito bem que, quanto maior o
nível da imbecilização social, ou seja, da alienação das mais perversas
possíveis, maior será o voluntarismo serviçal dos sujeitos, em nome dos
senhores do capital.
Não há ilusões sobre esta
imbricada e selvagem “guerra cultural”, imposta pelo capital e engendrada nos
alicerces do que se poderia chamar “soft power”, empregando narrativas, ora
subliminares, ora explícitas. O terraplanismo ideológico é uma ode à
imbecilização coletiva, ou seja, uma apologia ao fetichismo pós-moderno e à
ignorância que ceifa milhares de vidas diariamente. Nada mais curioso e
sintomático do que a propulsão que tais ativistas do identitarismo dão ao
empreendedorismo neoliberal, como se fosse tábua de salvação social: o fetiche de
o sujeito virar “patrão” ou “patroa”, dentro de um Estado cuja interferência na
economia fosse mínima. Até onde mesmo o identitarismo é tão “inovador” assim? Com
o enfraquecimento das esquerdas de matriz marxista ou socialista, quem se interessaria
em patrocinar tão avidamente, tantos grupos identitários, forjados dentro da
própria esquerda que pulveriza o pensamento neoliberal, nos mais inacessíveis
guetos sociais?
O negacionismo e o revisionismo,
propalados por “narrativas” da extrema, direita são também utilizados como
estratagema pelos ativistas identitários. Distorcer os fatos, corromper a
verdade e difundir uma “nova verdade” que seja baseada nos interesses de grupos
extremistas que, muitas vezes, acredita em um mundo refém de alucinógenas
teorias conspiratórias de acordo com a freguesia: ora a culpa é do
“globalismo”, ora a culpa é do “privilégio branco”. Um exemplo desta
irracionalidade ativista é o movimento para derrubar estátuas em praça pública
que, supostamente, não seriam “politicamente corretas”. Com a retórica da
vulgata autoritária, se algo está fora das querelas da moral identitária, logo
deverá ser derrubado em nome dos novos “bons costumes”. A irracionalidade e a
contradição são elementos intrínsecos de movimentos cuja mobilização parte da
suposta hegemonia de interesses narcíseos, tal como a extrema direita e o
identitarismo neoliberal com pretensos “ares de vanguarda”.
Ao mesmo tempo em que o
terraplanismo ideológico distorce uma visão de mundo mais humanitária, ele
contribui para incrementar a ideologia do capital, por sinal, cada vez mais
forte, hegemônica e irrefreável. Quase todas as formas de crítica, colocadas no
balcão do debate público, não deslumbram o destronamento ou, sequer, o
questionamento do capital, mas sim fantasiam formas mais ou menos exóticas para
incrementá-lo, nas diferentes sociabilidades e quadros econômicos. A pandemia
que causou a maior crise sanitária de todos os tempos, apenas deixou escancarado
um mundo cada vez mais desequilibrado economicamente, desguarnecido de
alternativas, com a falência sintomática da crítica social e com populações
inteiras ajoelhadas e subjugadas pelo martírio do capital à espera do tilintar
da própria sorte.