Sob o ponto de vista cultural, o Brasil de Bolsonaro não foi mero casuísmo eleitoreiro. Precisam-se observar os elos de uma intrincada construção do que de pior foi gerado por uma cultura primitiva, fermentada no analfabetismo funcional da periferia das grandes metrópoles, aliada ao efêmero mundo dos novos-ricos do chamado “agrobusiness”, ou simplesmente, os negócios bilionários gerados no campo.
Sintomaticamente, o "boom" da monocultura agrícola do Centro-Oeste do país ganhou enorme impulso nos anos de Lula e Dilma, no comando do Governo Federal, e a demanda de produtos do gênero no mercado internacional, em particular, o chinês. Com a crescente perda de poder político e participação da produção industrial no produto interno nacional, devido ao fenômeno da desindustrialização brasileira, é justamente neste lado do Brasil, os cercados do latifúndio, tão enraizados na cultura econômica e predatória brasileira, que se encontram os principais mandatários do capital financeiro do país.
Retomando o poder político outrora perdido, o “agrobusiness” se consolida por grande parte, nas decisões políticas nacionais com uma numerosa e influente bancada no Congresso Nacional e, desta forma, permite sobrevida e sustentação política para o moribundo governo de Bolsonaro. Em troca deste apoio existencial, Bolsonaro concede aos donos do “agrobusiness” brasileiro, total liberdade para todas as formas de exploração, desde a intensificação de uso de agrotóxicos à livre devastação das florestas tropicais, em nome, exclusivamente, de ampliação dos lucros. Diante do império do “agrobusiness” na política brasileira, a extrema direita cresceu, a democracia se fragilizou ainda mais, as disparidades econômicas se aprofundaram e o flagelo da fome voltou a ser endêmica.
Voltando aos aspectos culturais, a expressão musical da amalgama "campo-cidade" é o popularizado "sertanejo universitário" (em detrimento ao velho e tradicional "sertanejo-raiz" vinculado diretamente ao campo), sem atrelar-se sentimentalmente com o campo, sob um tripé urbano ancorado em um narcisismo autofágico: "balada, bebida e mulher". Este "jaguncismo cultural" que permeia o campo e a cidade, é o gênero musical que expressa a desertificação neoliberal da futilidade dos tempos de liquidez pós-moderna e as relações sociais efêmeras, sob o manto de um hedonismo estéril, o descarte dos sentimentos, a mercantilização de quase todas as formas elementares da vida social e a sexualidade afoita e imediata da profundidade de um pires.
A indústria cultural capturou este clima de desprezo pela sensibilidade humana, patrocinada pela tempestade neoliberal e catapultou uma série de "artistas" para se posarem com violas e chapéus de vaqueiro (imitando os “caubóis” estadunidenses)., trajando um vestuário despojado que tenta fazer remodelagem para um oportunista “estilo moderno”. Neste sentido, a qualidade musical não é a essência, mas sim o desempenho midiático dos artistas que atuam como cantores para entretenimento do público. Sob um pano de fundo do falso bucolismo urbano-campestre, esconde-se a ideologia do neoliberalismo sem rédeas, sem escrúpulos, exalando o perfume da terra com seus compostos orgânicos e a ostentação dos "vencedores" do capital rural do Centro-Oeste.
A cidade de Goiânia serviu como uma espécie de polo irradiador desta cultura do jagunço moderno brasileiro, o qual cultiva todas as benesses que o dinheiro pode comprar e despreza qualquer coisa que seja progressista ou civilizacional em termos de coletividade. Alheio a toda a realidade da miséria brasileira e enfraquecimento das esquerdas e dos movimentos populares, o jaguncismo cultural se tornou um braço da extrema direita brasileira, ampliando seu “soft power” para além das cercas do latifúndio. Não é a toa que o jagunço e miliciano Bolsonaro ganhou apoio quase incondicional da turma das violas e dos acordes dos ícones musicais do "agrobusiness" do Centro-Oeste.
O Brasil é um desafio para qualquer análise sócio-histórica, devido à sua complexidade dinâmica tão desequilibrada economicamente, quanto é assolada por uma burguesia tão perversa que faz o pobre Satanás ficar corado! Se não bastasse a desgraça cultural desta turma, ao estilo da "inveja do falo" freudiano, plasmou-se uma cepa "feminista" de mulheres que cultuam dos mesmos valores dos venerados "machos rurais": a “trepada” em motel, o choramingo por amores fúteis e a apologia à bebedeira de boteco. Para o suprassumo do "sertanejo feminista", o "feminejo", recorre-se a adoração masoquista pelo gozo da "traição machista", ou seja, a "tara pelos chifres amorosos".
Na narrativa do "feminejo", as mulheres são retratadas como objetos descartáveis e abusadas sentimentalmente por homens jagunços. Paradoxalmente, segundo a lógica do “feminejo”, estas mesmas mulheres não conseguiriam "sobreviverem" sem as truculências e as deslealdades desses homens supostamente amados. Na miséria cultural do “feminejo”, tudo circula no tripé da futilidade existencial: traição, bebedeira e choradeira. Tudo tão maduro quanto a população de um berçário! Supostamente, na ausência de qualquer sentimentalismo com mínimo de densidade que se aproxima da barbárie, habita uma crueza tão empobrecida que alimenta a “narrativa da mulher comum”, ou seja, aquela mulher que vive uma realidade habitada nas fantasias de boteco das composições do “feminejo”.
O laço de uma neurose obsessiva por relações degeneradas é o que se traduz por "amor" nas melodias do "feminejo" que cultua o padrão de futilidade e esvaziamento emocional. Para delírio dos lucros do capital que parasita a miséria humana, há ainda quem defenda tais valores como "emancipadores" para as mulheres. Em pleno século XXI, padrões tão medíocres de valores humanos, ainda são cultuados como “avanços” para as mulheres. Por sinal, este conjunto de elementos é explorado exaustivamente pelo grande capital para domesticar padrões de comportamento e consumismo em massa.
Diante desta bizarra mistura de futilidades plasmadas pelo "feminejo", a indústria cultural batizou o com o insosso nome de "sofrência", o estilo musical de letras que apedreja a Língua Portuguesa, constrói rimas tão ricas quanto um salário mínimo e despeja um cenário de completa insignificância do processo civilizacional. Naturalmente, não se busca fazer aqui um patrulhamento inquisidor de uma estética musical, mas o quanto se torna visível uma mistura do jaguncismo parido pela extrema direita com o neoliberalismo na cultura brasileira. Os elementos toscos da cultura do jaguncismo tomaram o país e, até mesmo nas periferias dos grandes centros, tornou-se habitual o ecoar estridente das músicas da futilidade dos representantes de uma extrema direita, os quais substituíram a ausência de talento artístico, pelo turbinamento dos dólares do "agrobusiness" à disposição nas engrenagens da indústria cultural.
O festival de grosserias que beira a repugnância são cantadas, sem nenhum constrangimento, pelas musas do "feminejo" que se enriqueceram à custa da miséria intelectual e cultural solidificada pela indústria da massificação de mercado. Vale ressaltar que a exploração da miséria humana não é exclusividade deste gênero musical, todavia, a cultura do jaguncismo soube potencializar a elaboração predatória deste nicho de consumismo. A miséria cultural é apenas mais um lastimável retrato de um Brasil que perdeu seu rumo histórico, com uma trilha sonora da obsolescência humana em prol da descartável e mercantil cultura do jaguncismo.
(Wellington Fontes Menezes)
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