Em
meio à maior crise sanitária de todos os tempos, o Brasil resolveu insistir em
fazer a manutenção do processo eleitoral municipal e ignorar os quase seis
milhões de contaminados pelo novo coronavírus, Sars-Cov-2. Na mesquinhez da
vida cotidiana bancada por uma elite insensível ao sofrimento da grande maioria
da população, os interesses políticos imediatos se tornam superiores aos das
vidas humanas. As eleições foram decorrentes de grandes aglomerações, com
candidatos em campanha ao longo das últimas semanas e da movimentação deste
domingo eleitoral. Com o final do
primeiro turno, as eleições na pandemia mostraram alguns sintomas que serão pontuados
a partir de um breve esboço do panorama da política nacional do ponto de vista
da arquitetura de poder constituído pelos municípios. Em todo o país, com
máscara, álcool em gel e título na mão, o eleitor foi fazer a sua escolha de
prefeitos e vereadores, marcando elementos norteadores de algumas considerações
sobre a política imediata brasileira.
O
primeiro ponto, no quadro nacional,
notadamente, o grande perdedor foi Jair Bolsonaro. Com exceção do Rio de
Janeiro e Fortaleza, os candidatos apoiados por Bolsonaro não decolaram em nenhuma
outra capital. Os casos do Rio de Janeiro e Fortaleza, os candidatos
bolsonaristas foram para o segundo turno das eleições de forma sofrível e baixa
votação que se esperava de antemão. Muitos dos candidatos apoiados por
Bolsonaro, como Celso Russomano, em São Paulo, esconderam ou disfarçaram, ao
longo da campanha, o apoio dado daquele que foi o maior responsável pelas 165
mil mortes por COVID-19 neste país. Dois anos após a grande explosão do
eleitorado extremista de direita que impulsionou a escolha de Bolsonaro ao
Palácio do Planalto, a questão mais importante desta eleição é o fato das
candidaturas ligadas à extrema-direita demonstrarem estar em aparente refluxo
eleitoral no país. Em 2020, o resultado das urnas mostrou uma perda de fôlego
destas candidaturas que apoiam o extremismo político como forma de ampliar o
primitivismo da sociabilidade brasileira. Todavia, isto não significa que
teremos tempos com ares democráticos para os próximos pleitos.
Apesar
desta perda de fôlego das candidaturas extremistas, observou-se, em segundo ponto, ainda na onda das
eleições de Bolsonaro e sua truculência fascistizante refletida nas eleições de
2018, o ressurgimento de diversas candidaturas de militares, forças integrantes
de polícias, delegados, juízes e militantes ligados às demandas da segurança
pública. Diante da guinada ultraconservadora no debate político em parcela
significativa da sociedade, tais candidaturas tiveram grande visibilidade e,
como se previa, foi quase nulo o real debate político. Este é um nicho que irá
perdurar enquanto ainda tiverem fôlego os estratagemas bolsonaristas, na
sociedade. Fato preocupante é os principais partidos de esquerda, PT e PSOL,
oferecerem este tipo de candidatos para o eleitorado, como é o caso da
esdrúxula candidatura petista da Major Denice, em Salvador.
O
terceiro ponto, a onda identitária
ampliou-se ainda mais nesta eleição. Em nome de uma maior representatividade,
foram promovidas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), as cotas partidárias
para impulsionar “candidaturas negras”. Contudo, de forma genérica, em nome da
representatividade, houve uma oferta dessas candidaturas e que tornou o debate
da política mais maniqueísta, com a construção de um falso “trade off” entre negros
versus brancos. Do ponto de vista da estratégia política, com a onda
identitária forte, da esquerda à direita, muitos candidatos reivindicaram o
misticismo da “ancestralidade negra” para si, em busca de se colocarem como
herdeiros transcendentais da tradição da “cultura negra”. Com tal estratégia
bem definida, tais candidaturas buscaram angariar simpatia e votos para uma
causa que, na prática, se tornou recurso de um discurso unilateral e
personalista. Na esteira das identidades, não faltou a exaltação à “força da
mulher”, com as candidaturas “feministas” e, além delas, as candidaturas
“transgêneras”. Apesar de corresponder a 50,6% da população brasileira, a questão
da candidatura das mulheres merece destaque quanto à participação do percentual
de prefeituras conquistadas, 12,2% somente no primeiro turno, conforme dados do
TSE.
No
quarto ponto, é perceptível uma onda
de pessoas que ingressam na política, buscando lentamente substituir elementos
mais conservadores. Há uma tendência de algumas democracias ocidentais
colocarem estes novos atores para administrarem o capital. Um exemplo patente
desta premissa foram as eleições estadunidenses e, por sinal, com reflexos no
Brasil, onde as candidaturas identitárias que se inspiram em ideologias
neoliberais, ganham visibilidade social e são patrocinadas tanto pela grande
mídia, quanto pelos grandes grupos empresariais fomentadores de campanhas
eleitores. Vale lembrar que o simples fato destas candidaturas estarem reunidas
em partidos de esquerda, não quer dizer que tais candidatos comungam de ideias
mais pertinentes a uma esquerda clássica, com bases marxistas.
No
quinto ponto, observa-se uma eleição
paradigmática em São Paulo. Apoiado pelo governador João Dória, o atual
prefeito, Bruno Covas, foi para o segundo turno, com quase um terço dos votos
válidos e disputará a prefeitura com Guilherme Boulos, do PSOL. Fato pertinente
foi o mísero percentual de um pouco mais de 8% do leniente candidato do PT,
Jilmar Tatto. Com erros estratégicos grotescos, em São Paulo, o PT amargou a
pior votação dos últimos tempos na capital paulista, cidade esta que o partido
governou em três mandatos: com Luiza Erundina (1989-1992), Marta Suplicy
(2001-2004) e Fernando Haddad (2013-2016). Sem buscar uma coalização com os
partidos de esquerda na capital paulistana, PT e PSOL disputaram os votos do
eleitorado. Boulos, com mais carisma midiática do que o insosso Tatto, logo
ganhou musculatura em sua candidatura e angariou tanto os votos do eleitorado
petista e simpatizantes do partido, quanto o campo mais progressista
não-atrelado ao petismo. Com pouco mais de 20% dos votos válidos, Boulos
consolidou-se como uma liderança ascendente na política paulistana à esquerda.
Todavia, caso deseje, de fato, ganhar a prefeitura da conservadora São Paulo, terá
a missão de se distanciar das querelas identitárias de uma classe média,
pretensiosamente ilustrada, do seu partido e voltar-se ao campo da realidade,
buscando votos das periferias e dos trabalhadores.
O
sexto ponto poderá ser observado na
fragmentação da unidade das esquerdas. Tanto em São Paulo, quanto no Rio de
Janeiro, a desunião das esquerdas foi flagrante. No caso do Rio de Janeiro,
Benedita da Silva do PT e Renata Souza do PSOL, naufragaram suas candidaturas
em disputas fratricidas. Em São Paulo, nem mesmo a direção do PT acreditava que
Tatto fosse para o segundo turno e, mesmo assim, insistiu com a candidatura, numa
cena vexatória em termos de eleições majoritárias. Sem nenhum aceno real à
candidatura de Boulos, o próprio PT contribuiu para sair do protagonismo do
atual momento político. Há um saldo positivo em meio ao caos eleitoral para o
PT, em ternos de votos para a vereança, onde conseguiu ter a liderança em
número de votos e ainda obteve a honraria de ter o veterano Eduardo Suplicy
como o vereador mais votado de São Paulo.
O
sétimo ponto desta análise, no calor
do momento, visa a eleição em aberto para a presidência em 2022. Apesar da
derrota sensível das alas bolsonaristas nas eleições deste ano e a perda de
popularidade e de rumo do seu governo, Bolsonaro segue com uma parcela fiel do
eleitorado que, atualmente, se encontra em um percentual de 30%, segundo
pesquisas mais recentes. Importante destacar que os principais partidos da
órbita da extrema-direita com laços estreitos com o bolsonarismo, segundo dados
consolidados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de prefeitos eleitos no
primeiro turno, tem-se o PSL, o Republicanos, o PSC, o Patriotas e o PRTB que, juntos,
conquistaram cerca de 8,6% das prefeituras do país. Todavia, é importante
destacar a ampliação das prefeituras do conjunto destas cinco siglas que passaram
de 244 prefeituras em 2016, para quase o dobro, 467, em 2020.
A
partir deste percentual, o oitavo ponto
se revela com grande preocupação e requer maior atenção. O campo das esquerdas,
aqui destacando os três principais partidos com representação na Câmara dos
Deputados e na conquista de prefeituras: o PT, o PSOL e o PC do B, juntos
conquistaram 229 prefeituras somente no primeiro turno destas eleições (sem a
necessidade de um segundo turno), em um total de 5400 municípios. Este
percentual significa apenas 4,2% de todo o conjunto dos municípios. Um aspecto
é o recuo de 32% no número de prefeituras deste conjunto, o qual passou de 337,
em 2016, para 229, em 2020. Somente o PT perdeu 75 prefeituras entre 2016 e
2020, ou seja, um recuo de quase um terço do seu mapa de administração nacional
de municípios. Por outro lado, o crescimento das prefeituras conquistadas pelas
siglas da extrema direita bolsonarista é significativo e representa
praticamente o dobro das siglas à esquerda do espectro político. Tais números
demostram os desafios de romper a bolha de mediocridade e conformista que se
instalou no pensamento de esquerda brasileira atualmente. Em 2018, a
subestimação da ascensão de Bolsonaro foi um exemplo da falta de estratégia do
campo das esquerdas e do campo mais progressista. A decorrência de erros
estratégicos que já datam desde 2013, diante dos protestos de inverno capturados
pela direita, a qual culminou na derrubada da presidente Dilma Rousseff,
possibilitou a maior ascensão do populismo da extrema direita da história do país.
O reflexo da escalada do bolsonarismo da extrema direita no Brasil refletiu na
explosão do número de assassinatos de candidatos nas eleições deste ano no país.
Este ponto merece ser analisado com maior refinamento em outra oportunidade.
Um
nono ponto que merece ser observado
é o número de votos não válidos, ou seja, a somatória de abstenções ou
ausentes, brancos e nulos. O reflexo direto da pandemia se fez presente nestes
números, além do desinteresse popular pelas eleições. No Brasil, segundo o TSE,
este percentual foi de 30,57% e, em particular, na cidade de São Paulo, 40,59%.
Em termos comparativos, este número é deveras alarmante na cidade paulista, posicionando-a
na primeira colocação geral entre os candidatos concorrentes à prefeitura, no
pleito deste domingo, 15 de novembro. Trocando em miúdos, o grande vencedor das
eleições em São Paulo foi o conjunto das abstenções, brancos e nulos!
E
por fim, chega-se ao décimo ponto. O
grande vencedor dessas eleições foram os partidos tradicionais da direita (MDB,
PP, PSD, PSDB, DEM, PL e PTB) que juntos somaram 3417 prefeituras somente no
primeiro turno das eleições de 2020. Número tão expressivos que corresponde a 63%
de todos os municípios brasileiros! Diante desta realidade, a questão central é
a escolha de um candidato aglutinador e que possa ampliar a massa de votos e
ser competitivo para conquistar o eleitorado para a esperada sucessão de
Bolsonaro.
Observando
os dez pontos em destaque,
sobressai-se uma predominância que ficou
explícita ao logo da batalha do primeiro turno das eleições de 2020: nenhuma
candidatura “puro sangue”, ou seja, totalmente composta por candidatos (titular
e vice), no campo das esquerdas, sagrou-se vencedor em nenhuma cidade política
ou economicamente com relevância no cenário nacional. Mais do que nunca, para o
campo da esquerda e dos setores mais progressistas, é hora de baixar o salto da
prepotência e ampliar a análise da conjuntura tendo em vista o arco de alianças
políticas, caso deseje derrotar o desgoverno fascistóide de Jair Bolsonaro nas
eleições de 2022.
Dentro
de alguns dias, teremos o segundo turno das eleições com 57 cidades, incluindo
18 capitais, para definirem seus prefeitos, como São Paulo, Rio de Janeiro,
Porto Alegre e Recife. São cidades com maior aporte populacional, político e
econômico e, por sua vez, merecerá uma análise mais pormenorizada e,
posteriormente, será elaborada e divulgada.