domingo, 12 de abril de 2015

Um continente perverso: algumas breves peculiaridades do fascismo à brasileira


Apesar de pouco divulgado, é sempre pertinente (re)lembramos um curto e magistral documentário de Jorge Furtado de 1989, “A Ilha das Flores”. Didático na sua essência, ele serve para refletirmos uma sociedade que tem em sua alma a podridão de impor que uns tem mais direitos do que outros. As cenas são cruzadas e dá um efeito muito sintético de entendimento de como a crueldade, a ganância e a desigualdade é o motor de um continente de tantas riquezas e contradições intrínsecas.

Nossa mediocridade é orgânica, fruto de uma sociedade parida da desordem e da acumulação. Somos hoje um bando de seres que tentam coexistir num mesmo espaço, porém a briga por farelos nós diferenciam de forma qualitativa. Quem tem o monopólio do capital e do poder de polícia assume as rédeas do jogo entre quem pode mais e os que nada podem.

A violência viceja com dois aspectos: como (o)pressão das classes mais pobres e a manutenção da desigualdade com a promessa de “melhores oportunidades” para todos. O que de fato, é que o tal “todos”, na linguagem capitalista, são apenas alguns, muito poucos, apenas os bons adaptadores das hostilidades do sistema podem garantir as benesses de algumas uvas da videira cujos donos é apenas um punhado de espertalhões. A Justiça beneficia quem mais pode comprar anteparos no mercado da Lei, bons advogados e alguns juízes de moral “flexível” é quase sempre a senha para a impunidade no alto estrato social. O emaranhado de leis se constituiu numa teia indecifrável de um fetichismo jurídico que pouco dá vazão a atitudes realmente de punição e justiça, propriamente ditos. Diante da injustiça generalizada, a farra dos ricos e da política da “carteirada” (ou seja, o mote “com quem você pensa que está falando?”), punir os pobres parece ser a melhor política e a mais fácil, diante do mar de injustiças e demagogias reinantes que tomou conta da opinião pública.

A pobreza ainda é vista não como um crime hediondo das classes dominantes contra as mais desfavorecidas.  Ser pobre no Brasil nunca foi um castigo existencial, ou seja, não chega a ser uma “limitação” das relações sociais[1], mas diante de uma lógica de pura perversão, se tornou uma questão de não ter habilidade do papel “empreendedor” dentro do mundo em que vive. A lei da selva é a doutrina selvagem da procriação e castração capitalista.

A política é a produção de falsos estabilizadores os quais impedem maior mudança das relações de trabalho e capital e a manutenção das regras rígidas entre pobres e ricos. A representação popular é trocada pela representação daqueles que fazem a manutenção da sociedade. Nossa democracia é inacabada, apesar dos avanços, mas preocupa os valores que originam dela pouco ainda é visto como fundamentais por parte significativa dos brasileiros. Nossa democracia é ainda pequena e incipiente perante as desigualdades latentes e, consequentemente, o Estado é ainda mínimo para atender toda a demanda necessária. Ademais, somente com pura e sádica perversidade desejar um “Estado mínimo” diante de tantas fragilidades máximas em nosso país.

Os padrões de crueldade são estabelecidos por regras burocráticas, onde alguns pouquíssimos grupos tem acesso e se isolam em um poder quase sempre marcado por desvios, corrupção, clientelismo, ou seja, o lado subterrâneo da democracia. Por outro lado, os avanços sociais mais pertinentes corridos nos últimos anos, através de políticas sociais redistributivas para aqueles setores mais frágeis socialmente, são logo minimizadas, ridicularizadas e criticadas justamente pelas elites bem nutridas e setores mais abastados da classe média. Uma vez que é pertinente não dar espaço para conquistas que possam alterar qualquer nuança do status quo vigente e dai, o esgotamento do modelo redistributivo sem aprofundar as reformas essenciais para uma profunda transformação do meio socioeconômico.

Sim, somos imensamente perversos, não por uma questão de gênero ou fetiche sexual, mas pela própria capacidade humana de gozarmos com pequenos e grandes atos de perversidade, uns com outros, e conviver aplaudindo com riso histérico dos que mantem o poder sobre aqueles que nada podem fazer além de ter autopiedade e acreditar que algum salvador extraterreno divino mude a sua condição.

Aqui, a questão da perversidade é a matriz do pensamento autoritário do fascismo que nos impede de olhar o Brasil com um ar de maior soberania entre um passado malogrado e um futuro cheio de vãs promessas. O fascismo à brasileira é muito mais cruel e difere dos aspectos clássicos do Europeu. Aqui, o ódio de classes está no ódio aos pobres. O conceito é tão arraigado que quando um pobre tem a ilusão de ascende de classe, “virou classe média”, ele começa a reproduzir o mesmo discurso do asco que as classes dominantes têm dos pobres. Por sinal, da classe dominante, o que lhes interessa com relação aos pobres são basicamente duas questões básicas: a força de trabalho dos trabalhadores cada vez mais precarizados e o sexo das mulheres pobres. O primeiro é óbvio, é o que move o mundo do capital, o segundo é pelo fato que sexo genital é primitivo e é um produto meramente comercial, passível de trocas. Por isto que a prostituição (explícita ou implícita) é a atividade mais próspera no mercado de compra da força de trabalho e independe de crises econômicas sistêmicas e, aquela, que cria mais ilusões gananciosas e infantis da ascensão exponencial do desejo de “mudar de vida”.

Iludimo-nos achando que somos civilizados. No caso brasileiro, não somos mais ou menos perversos do que outros povos, mas a nossa peculiaridade perversa inviabiliza um projeto maior e de maior durabilidade de mudança radical das estruturas socioeconômicas. De progresso simétrico, vivemos de pequenos surtos, suspiros, lampejos de uma esperança do “Brasil do futuro”... Porém, um coito interrompido logo se segue e sempre os ânimos recaem a posição de uma depressão passiva. Seria mais oportuno dizer que estaríamos em vias de alguma civilização, assim ao menos teríamos um norte a se avizinhado, apesar do gosto “medíocre” que a elite perversa sempre fez acreditar na nossa ficcional incapacidade de mudança em nossa sociedade. O verde da grama dos outros sempre foi vendida como melhor que o verde que faz a borda da bandeira nacional! Nesse conjunto, a questão ideológica preconizada pela Grande Mídia conservadora, mesquinha e insanamente gananciosa expõem tensões fabricadas em meio a desinformações, histerias e ódios cheios de vazios.

Sim, estamos melhores que num passado mais recente e primitivo na sua estrutura. Há pouco tempo atrás a pobreza extrema atingia os brasileiros em maior número, mas longe de acreditarmos que o cheiro do perfume é condicionante básico da emancipação humana e o fim das opressões de uns poucos contra todos os demais. Todavia, sem um projeto alternativo de realmente busque modificar as estruturas mais abissais de nossa sociedade, logo, o que podemos esperar é um movimento conservador reacionário de ares fascista. Mesmo apelando para pactos sociais com alguns lampejos de claridade. É preciso ir além de uma mera iluminação inconsciente para um progresso, sem buscar a via fácil e volátil pelo acesso dos mais pobres um mero consumismo de bens materiais e cultura estúpida. Se o Brasil deseja amadurecer com mais desenvoltura, é preciso ultrapassar velhos paradigmas inócuos, e buscar a fecunda e inadiável dignidade humana dentro dos alicerces da cidadania brasileira a todos e sem restrição. Todavia, por este caminho, não será sem lutas dos trabalhadores e dos movimentos sociais mais ligados às classes mais depauperadas diante de uma classe hegemônica de dominação cujo ranço é de matriz fascista, escravocrata e sádica.





[1] Há uma fetichização do “ser pobre”, um elemento valorativo quando vemos, por exemplo, a cultura do carnaval, onde a “comunidade” é levada ao panteão dos imortais dos “bambas”, em particular no Rio de Janeiro (com muito mais força) e em São Paulo. Todavia, esta ideologia sazonal de fluidez da demanda da paixão pela “pobreza” em termos culturais serve como um bloqueio entre “eles” (pobres) e nós (ricos) por parte das elites dominantes. Como se quisessem dizer em alto e bom som: “Aceitamos sua cultura três dias no ano, mas somente isto; os demais impomos a nossa cultura segregadora durante todo o longo restante dos dias do ano”. Uma espécie de canibalização da cultura alheia para domesticar suas pulsões e desejos em prol do controle daqueles que operam e decidem de fato as rédeas sociais. Outro exemplo é a preocupante ascensão meteórica da cultura evangélica que parte da premissa ideológica de despossuir o desejo do “convertido”, domesticando-o de tal maneira que seja um servo, não de Deus, mas dos desígnios da Igreja e de seus pastores que manipulam e controle o desejo de seus dóceis fieis. 

Um comentário:

  1. Parabéns pelo texto, sobretudo a nota a respeito da fetichização do "ser pobre",o que aliás tem sido feito tb por partidos e políticos que hoje habitam a periferia do poder no Brasil: quando lhes interessa segmentos da classe trabalhadora, tida comosua base de apoio são denominados de "pobres", em se tratando de atacar o suposto inimigo, e quando a relação com o aliado mutante está bem os mesmos pobres se transformam na "nova classe média". Uma elasticidade discursiva impressionante para domesticar os "representados" politicamente.

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