Apesar de pouco divulgado, é
sempre pertinente (re)lembramos um curto e magistral documentário de Jorge
Furtado de 1989, “A Ilha das Flores”. Didático na sua essência, ele serve para
refletirmos uma sociedade que tem em sua alma a podridão de impor que uns tem
mais direitos do que outros. As cenas são cruzadas e dá um efeito muito
sintético de entendimento de como a crueldade, a ganância e a desigualdade é o
motor de um continente de tantas riquezas e contradições intrínsecas.
Nossa mediocridade é orgânica,
fruto de uma sociedade parida da desordem e da acumulação. Somos hoje um bando
de seres que tentam coexistir num mesmo espaço, porém a briga por farelos nós
diferenciam de forma qualitativa. Quem tem o monopólio do capital e do poder de
polícia assume as rédeas do jogo entre quem pode mais e os que nada podem.
A violência viceja com dois
aspectos: como (o)pressão das classes mais pobres e a manutenção da
desigualdade com a promessa de “melhores oportunidades” para todos. O que de
fato, é que o tal “todos”, na linguagem capitalista, são apenas alguns, muito
poucos, apenas os bons adaptadores das hostilidades do sistema podem garantir
as benesses de algumas uvas da videira cujos donos é apenas um punhado de
espertalhões. A Justiça beneficia quem mais pode comprar anteparos no mercado
da Lei, bons advogados e alguns juízes de moral “flexível” é quase sempre a
senha para a impunidade no alto estrato social. O emaranhado de leis se constituiu
numa teia indecifrável de um fetichismo jurídico que pouco dá vazão a atitudes
realmente de punição e justiça, propriamente ditos. Diante da injustiça generalizada,
a farra dos ricos e da política da “carteirada” (ou seja, o mote “com quem você
pensa que está falando?”), punir os pobres parece ser a melhor política e a
mais fácil, diante do mar de injustiças e demagogias reinantes que tomou conta
da opinião pública.
A pobreza ainda é vista não
como um crime hediondo das classes dominantes contra as mais
desfavorecidas. Ser pobre no Brasil
nunca foi um castigo existencial, ou seja, não chega a ser uma “limitação” das
relações sociais,
mas diante de uma lógica de pura perversão, se tornou uma questão de não ter
habilidade do papel “empreendedor” dentro do mundo em que vive. A lei da selva
é a doutrina selvagem da procriação e castração capitalista.
A política é a produção de
falsos estabilizadores os quais impedem maior mudança das relações de trabalho
e capital e a manutenção das regras rígidas entre pobres e ricos. A
representação popular é trocada pela representação daqueles que fazem a
manutenção da sociedade. Nossa democracia é inacabada, apesar dos avanços, mas
preocupa os valores que originam dela pouco ainda é visto como fundamentais por
parte significativa dos brasileiros. Nossa democracia é ainda pequena e
incipiente perante as desigualdades latentes e, consequentemente, o Estado é
ainda mínimo para atender toda a demanda necessária. Ademais, somente com pura
e sádica perversidade desejar um “Estado mínimo” diante de tantas fragilidades
máximas em nosso país.
Os padrões de crueldade são
estabelecidos por regras burocráticas, onde alguns pouquíssimos grupos tem
acesso e se isolam em um poder quase sempre marcado por desvios, corrupção, clientelismo,
ou seja, o lado subterrâneo da democracia. Por outro lado, os avanços sociais
mais pertinentes corridos nos últimos anos, através de políticas sociais
redistributivas para aqueles setores mais frágeis socialmente, são logo
minimizadas, ridicularizadas e criticadas justamente pelas elites bem nutridas
e setores mais abastados da classe média. Uma vez que é pertinente não dar
espaço para conquistas que possam alterar qualquer nuança do status quo vigente
e dai, o esgotamento do modelo redistributivo sem aprofundar as reformas
essenciais para uma profunda transformação do meio socioeconômico.
Sim, somos imensamente
perversos, não por uma questão de gênero ou fetiche sexual, mas pela própria
capacidade humana de gozarmos com pequenos e grandes atos de perversidade, uns
com outros, e conviver aplaudindo com riso histérico dos que mantem o poder
sobre aqueles que nada podem fazer além de ter autopiedade e acreditar que
algum salvador extraterreno divino mude a sua condição.
Aqui, a questão da perversidade
é a matriz do pensamento autoritário do fascismo que nos impede de olhar o
Brasil com um ar de maior soberania entre um passado malogrado e um futuro
cheio de vãs promessas. O fascismo à brasileira é muito mais cruel e difere dos
aspectos clássicos do Europeu. Aqui, o ódio de classes está no ódio aos pobres.
O conceito é tão arraigado que quando um pobre tem a ilusão de ascende de
classe, “virou classe média”, ele começa a reproduzir o mesmo discurso do asco
que as classes dominantes têm dos pobres. Por sinal, da classe dominante, o que
lhes interessa com relação aos pobres são basicamente duas questões básicas: a
força de trabalho dos trabalhadores cada vez mais precarizados e o sexo das
mulheres pobres. O primeiro é óbvio, é o que move o mundo do capital, o segundo
é pelo fato que sexo genital é primitivo e é um produto meramente comercial,
passível de trocas. Por isto que a prostituição (explícita ou implícita) é a
atividade mais próspera no mercado de compra da força de trabalho e independe
de crises econômicas sistêmicas e, aquela, que cria mais ilusões gananciosas e
infantis da ascensão exponencial do desejo de “mudar de vida”.
Iludimo-nos achando que somos
civilizados. No caso brasileiro, não somos mais ou menos perversos do que
outros povos, mas a nossa peculiaridade perversa inviabiliza um projeto maior e
de maior durabilidade de mudança radical das estruturas socioeconômicas. De
progresso simétrico, vivemos de pequenos surtos, suspiros, lampejos de uma
esperança do “Brasil do futuro”... Porém, um coito interrompido logo se segue e
sempre os ânimos recaem a posição de uma depressão passiva. Seria mais oportuno
dizer que estaríamos em vias de alguma civilização, assim ao menos teríamos um
norte a se avizinhado, apesar do gosto “medíocre” que a elite perversa sempre
fez acreditar na nossa ficcional incapacidade de mudança em nossa sociedade. O
verde da grama dos outros sempre foi vendida como melhor que o verde que faz a
borda da bandeira nacional! Nesse conjunto, a questão ideológica preconizada
pela Grande Mídia conservadora, mesquinha e insanamente gananciosa expõem
tensões fabricadas em meio a desinformações, histerias e ódios cheios de
vazios.
Sim, estamos melhores que num
passado mais recente e primitivo na sua estrutura. Há pouco tempo atrás a
pobreza extrema atingia os brasileiros em maior número, mas longe de
acreditarmos que o cheiro do perfume é condicionante básico da emancipação
humana e o fim das opressões de uns poucos contra todos os demais. Todavia, sem
um projeto alternativo de realmente busque modificar as estruturas mais
abissais de nossa sociedade, logo, o que podemos esperar é um movimento
conservador reacionário de ares fascista. Mesmo apelando para pactos sociais
com alguns lampejos de claridade. É preciso ir além de uma mera iluminação
inconsciente para um progresso, sem buscar a via fácil e volátil pelo acesso
dos mais pobres um mero consumismo de bens materiais e cultura estúpida. Se o
Brasil deseja amadurecer com mais desenvoltura, é preciso ultrapassar velhos
paradigmas inócuos, e buscar a fecunda e inadiável dignidade humana dentro dos
alicerces da cidadania brasileira a todos e sem restrição. Todavia, por este
caminho, não será sem lutas dos trabalhadores e dos movimentos sociais mais
ligados às classes mais depauperadas diante de uma classe hegemônica de
dominação cujo ranço é de matriz fascista, escravocrata e sádica.
Há uma fetichização do “ser pobre”, um elemento
valorativo quando vemos, por exemplo, a cultura do carnaval, onde a
“comunidade” é levada ao panteão dos imortais dos “bambas”, em particular no
Rio de Janeiro (com muito mais força) e em São Paulo. Todavia, esta ideologia
sazonal de fluidez da demanda da paixão pela “pobreza” em termos culturais
serve como um bloqueio entre “eles” (pobres) e nós (ricos) por parte das elites
dominantes. Como se quisessem dizer em alto e bom som: “Aceitamos sua cultura
três dias no ano, mas somente isto; os demais impomos a nossa cultura
segregadora durante todo o longo restante dos dias do ano”. Uma espécie de
canibalização da cultura alheia para domesticar suas pulsões e desejos em prol
do controle daqueles que operam e decidem de fato as rédeas sociais. Outro
exemplo é a preocupante ascensão meteórica da cultura evangélica que parte da
premissa ideológica de despossuir o desejo do “convertido”, domesticando-o de
tal maneira que seja um servo, não de Deus, mas dos desígnios da Igreja e de
seus pastores que manipulam e controle o desejo de seus dóceis fieis.