sábado, 19 de junho de 2010

O Horizonte Perdido: A hipocrisia do debate educacional


“Há muita gente que tem se acostumado com lugares piores do que este – observava Bernard no fim da primeira semana passada em Shangri-La; era, sem duvida, uma das muitas lições que estava aprendendo.”
(James Hilton, “Horizonte Perdido”, 1933)





1. Um discurso vazio


Em “Horizonte Perdido” (1933), James Hilton descreve o desvelo do mito da terra prometida e ficcional de Shangri-La, um lugar com cenas paradisíacas em algum ponto do Tibete onde se encontraria a fartura da saúde e da felicidade. Na esteira da Shangri-la da retórica brasileira, o atual debate sobre a Educação Básica pública oscila entre um rocambolesco discurso tecnicista meritocrático e os idílicos suvenires protocolares dos gabinetes de burocratas de ONGs, técnicos ou acadêmicos a anos-luz da realidade. Indiferente ao processo de formação básico de seu povo, a ação governamental esta movida por uma praxe neoliberal de privatizar o debate educacional em ONGs ou entidades similares. O resultado é o destilar de retóricas pueris com resultados meramente protocolares e burocráticos.

Empresas privadas disfarçadas de agentes sociais e ventiladas pela onda neoliberal, com raras exceções, as tais ONGs trabalham com dois objetivos fundamentais: a manutenção de seu espaço de lucratividade (atrelada com ações de marketing para sua própria sobrevivência financeira) e debater a praxe do onanismo de projetos simplistas, idílicos, surrealistas ou de inviável execução na prática (geralmente é algum dourar da cereja de um bolo apodrecido). O Estado, em especial no governo tucano paulista, além de culpar simplesmente a classe docente pelo descalabro abissal, procura-se muito mais justificar as deficiências do sistema com a aplicação de remendos demasiadamente limitados e inadequados à severa crise que se instalou na Educação Básica. O resultado bem conhecido é a perpetuação da hecatombe educacional público.

Coagidos pelo pragmatismo do desencanto do mundo ao estilo weberiano, perdidos em lutas internas fratricidas intestinais, os sindicatos ligados à Educação se enrijeceram e se tornaram burocratizados perdendo o rumo de sua ação para além da reivindicação dos soldos proletários. Exceto por alguns programas pífios e paliativos, a desarticulação entre universidades, sindicatos e secretarias de Educação dos Estados é outro fator que impede uma construção realística de novos urgentes projetos pedagógicos. No momento que a ideologia neoliberal adentra na sociedade como um valor de uma perversa moral, a meritocratica invade a fala ressonante de “policemakes”, técnicos, professores e acadêmicos. A Educação deixa de ser um valor humanitário fundamental para se tornar uma competição capitalista entre seus agentes: a meritocracia é o mais perverso engodo neoliberal que se alojou na cultura do debate educacional. Para o riso amarelo de seus defensores, tudo se resolveria com a aplicação de provas de mérito e exames de verificação da tal “qualidade”. Não fazendo coro ao hipócrita discurso do tecnicismo meritocrático, não se pode cobrar coisa alguma de uma mera miragem. A sintética e asséptica punição não contribui em absolutamente nada no desenvolvimento do ser humano.



2. Uma trágica miragem

O sistema de Educação Básica público é uma miragem, aliás, uma trágica miragem. Entre provas e mais provas de supostas “aferição pedagógica”, anualmente é depositado um enorme volume do erário público em pesquisas débeis e inúteis, além de uma miríade de processo de verificação da tal “qualidade” que sabidamente se sabe o resultado prévio. Bom para o caixa de ONGs e empresa que aplicam provas dos sistemas meritocráticos da “qualidade total” em vultosos contratos com o governo.

Como se estivéssemos numa Suécia morena dos trópicos, a dispersão das provas meritocráticas no exaurido sistema educacional se tornou tão sintomática que pipocaram saltitantes as tais “olimpíadas dos saberes” (nas Ciências Exatas, Humanas e Biológicas). Na lógica da competição “educacional”, tudo quando é campo do saber se tem uma “olimpíada” a ser competida pelos alunos. Não se admira quando a BOVESPA cria um programa que ensina alunos a investirem na bolsa de valores! A “BOVESPA vai à escola” é um programa de uma aviltante excrescência! A proletária periferia paulistana agradece a nobre gentileza dos homens da impune fluidez do capital! A lição é simples, deslocar o parco dinheiro embutido no FGTS dos futuros proletários para a aplicação de ações nas próprias empresas que eles mesmos são espoliados diariamente. Bela lição aos futuros “micro-investidores” do Jardim Ângela, Cidade Tiradentes ou Paraisópolis! Coisas da violência simbólica que faria até mesmo Adam Smith corar a face de vergonha!

Aos destroços de um sistema falido, soma-se a complacente ação da Big Mídia que além de ser conivente com o neoliberalismo, emite na sociedade um discurso maquiavélico que privilegia a competição irracional em detrimento a caráter humanitário da Educação. Logo, como subprodutos da falência do sistema público de Educação Básica são emanados os parcos valores na sobrevivência do “mundo-cão” da competição desenfreada no mais puro destilar do darwinismo social. O resultado é bem conhecido: a falência total de um sistema público de Ensino Básico com alunos que saem das escolas muitos próximos da mera e humilhante condição de analfabetos funcionais.

Para o retumbante fracasso no sistema público educacional, muitos defensores neoliberais, técnicos burocratas e resignados da esquerda pragmática se refugiam em simplistas e estapafúrdias desculpas do nosso anacrônico histórico de desigualdades sociais. A insistência para um novo modelo de Educação é necessária ainda em pleno século XXI, num país que vive tempos midiáticos de neomilagre econômico (com taxas de crescimento próxima do período dos governos militares). Seres humanos não podem continuar a serem tratados com meras mercadorias. A lógica do descarte humano é um valor atroz que prevalece na sintonia fina entre mercado e ação governamental. Por mais bizarro que qualquer leitor desatento possa imaginar, o discurso neoliberal é construído com um vil destilar de cinismo nas falidas políticas educacionais. Grande parte das unidades escolares públicas é maquiada em perdulárias propagandas governamentais e parte significativa delas se constitui em antros de medo, insegurança e selvageria de coação moral e física. Exceto algumas ilhas que ainda estão na sobrevida do balão de oxigênio, o resultado real nas políticas educacionais é o desleixo do Poder Público pelo seu povo, sobretudo de menor poder econômico dentro de uma sociedade movida pelas matrizes da ética do consumo.



3. Um turvo horizonte

O Paraíso sempre propalado em belos debates sobre o vazio se perdeu de vista. Ao contrário dos maquiladores de plantão que sempre surgem do caos com seus sórdidos discursos franciscanos que visam minimizar o caos atávico do sistema público. Defender um sistema sabidamente apodrecido é compactuar com uma política de exclusão de gerações de seres humanos que são enganadas dentro de verdadeiras cadeias prisionais que muitos ainda insistem em chamar de unidades escolares.

Com o descaso governamental, a instituição das frágeis franquias familiares e a ética do consumo que majora os valores pessoais e sociais na pós-modernidade, é preciso compreender o caquético papel caricatural que se tornou a escola pública. Falida e débil, a Educação Básica pública apenas cumpre um burocrático papel de expedição de diplomas. Como prêmio de consolação, aos que sobreviveram a este processo de saturação do ser humano, poderá ganhar eventualmente um mimo governamental como uma vaga derivada de uma controversa política de cotas em universidades públicas ou uma bolsa de estudo em alguma faculdade privada de Ensino Superior de qualidade duvidosa, mas sedenta pelos louros do patrocínio governamental. A Educação brasileira é um grande arremedo arrastado de programas e ações governamentais díspares desconexas e eleitoreiras.

De forma direta ou indireta, o mercado dita as regras e as políticas a serem supostamente implementadas pelo Poder Público. Torna-se ridículo o cínico discurso de muitas ONGs como a marqueteira “Todos pela Educação” que é fomentada grandes grupos econômicos vem pousando com um querubim supostamente assistencialista e preocupado com a Educação no país. Naturalmente, se realmente tais grupos empresariais tivessem tão preocupada com a Educação como dizem, o tal mote da “responsabilidade social empresarial”, assim como fazem para ganhar obscuros processos de licitação nas três esferas de poder, por exemplo, poderia usar seus poderosos lobistas a pressionar políticos a encararem a Educação Básica como projeto fundamental de governo de qualquer sigla partidária.

Longe de algum horizonte da propalada Shangri-La, entre tantas maravilhas contemplativas importada de modelos educacionais estadunidenses, europeus ou asiáticos a ocuparem o espaço inutilmente sem observar a realidade local, o tempo passa e o faz-de-conta continua a sendo a palavra de ordem. Enquanto o debate sobre a Educação é vista pela ótica da desfaçatez e os olhos de rapina do mercado, continuará jorrar sangria de dinheiro público escoado pelo ralo, gerações de alunos sendo conduzidos como sendo um fardo social e professores-fordistas sendo tratados como animadores proletariados de salas de aula lotadas até a entrega das notas do final de cada ano letivo. Aliás, cada ano letivo do Ensino Básico público é mais uma miragem para ser computada em belas estatísticas educacionais e posteriormente serem usadas a bel-prazer de interesse eleitoreiros dos governantes.

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