sábado, 12 de junho de 2010
Almas Secas: A Perpetuação do Genocídio (Parte 1 de 3)
Estou no cansaço da vida
Estou no descanso da fé
Estou em guerra com a fome
(“Terra, Vida e Esperança”, Jurandir da Feira/Luiz Gonzaga)
A fome é um tema recorrente. Seja pelo desgraçado som das barrigas roncando dos famélicos, seja pelo espetáculo de sordidez hipócrita que como o tema é debatido (e sempre amenizado ou esquecido). Segundo uma estimativa atual da Organização das Nações Unidas (ONU), mais de 920 milhões de pessoas sofrem de fome crônica no mundo. Sem maiores adjetivações, a fome é muito mais que uma particularidade de uma dada região endêmica, mas, sobretudo uma questão profundamente inserida no modo de produção e partilha de riquezas materiais, ideológicas e culturais de uma sociedade.
Para quem vive nos suntuosos escritórios da Avenida Paulista, símbolo lustroso da “locomotiva” paulista, acomodando o farto glúteo em densas poltronas de couro “legítimo”, entre um olho nos índices da BOVESPA e o outro olho em algum catalogo em busca da próxima garota de programa para o descontraído “happy hour”, a fome seria uma coisa de pobre, preto ou nordestino (geralmente um misto destas três derivações!). Claro, é a tal “fome” não passa nem de longe da cabeça de algum agiota financeiro ou um empresário “bem sucedido” no capitalismo à brasileira.
Não seria a ética ascética do trabalho que agracia seu crédulo com beatitude do lucro e leva para debaixo do tapete qualquer excrescência a este processo? Na limitada dimensão do mundo e no alto de imponentes edifícios, a ótica do especulador das finanças do engenho capitalista, a fome e a degradação humana são problemas do “gueto” (leia-se, “aquelas criaturas que ficam pedindo esmola nos faróis da cidade” e ponto final!). Para as classes médias e remediadas, a questão da fome oscila entre a caridade recalcada e a “punição merecida” aos lenientes ao trabalho (logo, riqueza e pobreza é uma questão de meramente de “sorte para os esforçados”!). Para os burocratas formadores de políticas públicas, os chamados “policymakes”, a fome precisa se enquadrar dentro dos padrões orçamentários governamentais. Já para os políticos de amplo espectro partidário, a fome é sempre um mote que angaria um bocado jocoso de votos.
Josué de Castro (1908-1973) se debruçou com maior afinco e destaque no estudo da fome no Brasil. Pernambucano de nascimento, médico e sociólogo, conheceu bem de perto o drama existencial do conceito de fome. A definição para as origens da fome merece o destaque das palavras de Castro: “A fome é, conforme tantas vezes tenho afirmado a expressão biológica de males sociológicos. Está intimamente ligada com as distorções econômicas, a que dei, antes de ninguém, a designação de ‘subdesenvolvimento’”.
É muito mais simples culpar os miseráveis pela sua própria miséria humana do querer discutir os reais fundamentos da desequilibrada distribuição de renda entres os indivíduos vivendo numa mesma sociedade. Há ainda aqueles supostos “especialistas” que tratam do tema como se fosse praticamente “profano” a tal ponto que qualquer tentativa de debatê-lo seria em vão (sempre suscitando uma expressão semelhante ao “muito complexo” compondo a discussão da fome). Para os partidários do “complexismo da fome”, deveria perguntar aos que passam fome qual a sensação dos que não tem absolutamente nada para comer durante horas ou dias (certamente a resposta seria inequívoca!).
Naturalmente, dentro dos teares do que economista austríaco, Karl Polanyi, batizou de “moinho satânico”, o sistema de regulação da natureza capitalista do mercado que possui na sua gênese a ordem imperativa da desagregação social. O que causa certa perplexidade quando alguns pesquisadores buscam justificar o “ambiente caótico” do capitalismo na aproximação de teorias naturais de caos e complexidade (alguns ainda destes “bombeiros intelectuais” têm a insensatez de adornar tais estudos com um rótulo fantástico de “Econofísica”, ou seja, o que seria uma prosaica “Física da Economia”!).
Logo, o que sobra para amenizar os conflitos de classes e não proporcionar maiores empecilhos ao capital (por exemplos, revoltas e revoluções por parte dos excluídos do processo deste sistema)? Uma forma muito bem oportuna é a patrocinar a querela cristã da piedade ou caridade. Destaca-se no “Novo Testamento” a importância da doação como oferenda divina e não como necessidade de justiça social: “O poder divino deu-nos tudo o que contribui para a vida e a piedade, fazendo-nos conhecer aquele que nos chamou por sua glória e sua virtude” (Segundo Epístola de Pedro, 1:3).
A piedade sob a forma de caridade é uma vil promessa de cura que apenas sustenta a linha entre a vida e a morte. Atos de caridade podem ser muito salutares como dogmas religiosos (salvação da alma avarenta em busca de bonança na Terra Prometida), porém é um nefasto caminho para justificar a suposta amenização da fome. Tratar a questão da fome como um problema isolado e passível tão somente da assistência providencial da caridade na esfera pública é proporcionar a perpetuação latente da degradação humana. A miséria não pode ser estancada com cômodas medidas circenses de piedade contemplativa cujos resultados são paliativos ou inócuos.
Excetuando períodos de guerra ou profundas calamidades naturais, é permanente o desequilíbrio social em praticamente todos os países, sejam os mais desenvolvidos, em desenvolvimento ou subdesenvolvidos (com raras exceções são os países que conseguiram vencer seus desequilíbrios sociais, notadamente os que tiveram um aporte mais socializante de sua riqueza). O que difere tais blocos de países em diferentes condições de progresso material é o apoio logístico que o Estado atua em cada uma destes países, alguns mais propensos à amenização da pobreza enquanto outros relegam seus habitantes à própria sorte. A fome é o símbolo máximo do lento genocídio do descarte humano.
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