terça-feira, 3 de novembro de 2009

Crime, império e impunidade: As quadrilhas de exploração da Fé e a crise na crença em Deus




: Rubrica: filosofia. Na escolástica, crença religiosa sem fundamento em argumentos racionais, embora eventualmente alcançando verdades compatíveis com aquelas obtidas por meio da razão (Dicionário Houaiss Eletrônico)

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Levantar-se-ão muitos falsos profetas e seduzirão a muitos. (Mateus, 24.11)



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Segunda-feira, 02 de novembro: Dia de Finados. Os principais portais da internet de notícias de São Paulo estampam a “Marcha para Jesus” que segundo estimativas da Polícia Militar embarcaram um milhão de pessoas no show religioso na capital paulistana. O mesmo destaque da “marcha” sairá nas capas impressas de todos os jornais paulistanos nesta quarta-feira. A fé que movimenta mercados, ganha votos, constrói impérios e fortalece quadrilhas.


Com direito a trios elétricos, fáceis discursos de louvores a Jesus e óbvias invocações aos pseudo-moralismos, o movimento foi muito mais que uma “ação religiosa”. Com a adesão de outras seitas que utilizam a religião para seus obscuros interesses, a “Marcha para Jesus” é promovida pela seita religiosa denominada “Renascer em Cristo” de propriedade do casal Estevam e Sônia Hernandes. O destaque este ano da “marcha” vai para o uso como palanque de políticos como o senador Marcello Crivella (PRB-RJ) principal braço político da maior seita religiosa do país, a Igreja Universal de Edir Macedo e de outros políticos menores ligados às seitas de diversas denominações, como o “homem de fé”, Bispo Gê (DEM-SP) ligado à própria Renascer. O evento também marcou a primeira exibição pública do casal Hernandes que retornaram ao Brasil após cumprirem pena nos Estados Unidos por crimes de contrabando de dinheiro e conspiração para contrabando de dinheiro. Comprovada pelas autoridades estadunidenses, o casal da Renascer são pessoas de idoneidade ilibada! Vale a pena uma nota do surrealismo deste gênero de “show da fé”, além da mescla de artistas e papagaios de palanque de olhos esbugalhados para as eleições do próximo ano, foram montadas duas piscinas para realizar “batismos”. Que show, “my God”!


A “marcha” deste ano foi batizada com um pomposo título que merece menção: “Marchando para derrubar gigantes”. Certamente o casal Hernandes deveria estar se referindo a Justiça dos Estados Unidos os quais ainda possuem pendências, pois a Justiça brasileira é totalmente míope, omissa e leniente com as quadrinhas que utilizam do mote religioso para formarem impérios do crime. Previsivelmente estúpida é a retórica esfarrapada do discurso dos chefes destas máfias organizadas, denominadas “igrejas” ao reportar à balela da “discriminação” ou “perseguição religiosa” de suas organizações. Deixando o PCC e o Comando Vermelho no chinelo, muito melhor do que o negócio do narcotráfico e contrabando de armas, a exploração da fé religiosa é muito mais simples, fácil e exponencialmente lucrativa; principalmente num mundo mercantilizado e desnorteado de valores básicos de conduta e dignidade humana. A era do excesso também é a era do atrofiamento da crença e da vertigem existencial.


Que o mercado da fé é tão velho quanto Adão e Eva ninguém deve pairar alguma significativa dúvida. O que distingue as antigas das atuais seitas é o seu potencial canalizador de recursos numa rapidez impressionante para construir impérios econômicos. Guerras, crimes, pilhagens, torturas, banhos de sangue e tantas outras atrocidades foram cometidos pelos homens em nome de Deus. O mercado das crenças sempre foi o mais lucrativo de todos os negócios bem antes da construção do capitalismo como sistema econômico como um auspicioso avassalador e acumulador de riquezas e bens materiais. O temor a Deus ou a força de coerção divina foi um grande modelador de atitudes e comportamento imposto por um grupo de comando aos seus subordinados. A ideologia religiosa sempre foi um poderoso estratagema na construção de impérios políticos e econômicos, privados ou públicos. Na ausência absoluta de respostas para simples (porém, não triviais) questões existenciais, o nome de Deus ventilou ao longo dos séculos para servir como um cobertor existencial que amenize o sofrimento e um alimento existencial para a esperança e dor. Aliás, nada mais humano que a necessidade de continuar “vivo” perante a total desesperança do seu meio circundante. A fé é a projeção do inconsciente para a construção de um imaginário simbólico a ser delimitado com “real”. Um dos principais estudiosos mundiais sobre mitos, o estadunidense Joseph Campbell, trás em suas análises uma provocativa e instigante construção teórica pela observação de grande similaridade de ritos e mitos que constituíram diversas crenças e religiões ao longo de diferentes sociedades possibilitando o nascimento de tais manifestações religiosas a partir de raízes ou geratrizes comuns. A religiosidade é, em muitos aspectos, uma necessidade tão humana quanto às necessidades fisiológicas, afetivas ou sexuais. A partir de tais premissas que se apoderam as diversas quadrilhas de exploração da fé ou da boa-fé alheia.


O império criminoso constituído pela seita da “Igreja Universal do Reino de Deus” (IURD) de Edir Macedo é um marco referencial do quão é lucrativa a exploração da fé. Dona de um império incalculável, a pujança econômica da IURD se enraizou por diversos setores da sociedade, fomenta financeiramente partidos políticos de quase todos os espectros ideológicos, além de ter seu partido próprio (com o irônico nome de Partido Republicano Brasileiro, PRB, aliás, sigla partidária do vice-presidente, José de Alencar) e constituir uma sólida base no Congresso Nacional. Ressalta-se o exponencial império midiático de Edir Macedo e sua IURD, dona de um sólido aparelhamento dos meios de comunicação (aquisição de rádios, jornais e televisões) e possui bases (os templos ou “igrejas”) em quase todas as regiões do planeta Terra (talvez a exceção ficasse sendo a ausência da “Universal” nos pólos gelados na Terra e no deserto do Saara!). A Renascer do casal Hernandes é outro império econômico que segue os mesmo passos da “co-irmã” Universal, com a aquisição de templos, canais de comunicação e enraizamento dentro de partidos políticos. Demais seitas com mote religioso seguem a mesma linha empresarial do crime organizado baseando no “pioneirismo” da IURD, tais como a “Igreja da Graça” de R.R. Soares, “Deus é Amor” de David Miranda, além de outras seitas mais exóticas como a “Sara Nossa Terra” e a bizarra e surreal “Bola de Neve”.


Que tais quadrilhas motorizadas pela fé sofisticam cada vez mais seu poder de atuação dentro da sociedade não é de causar estranheza. A retórica falaciosa do casal Hernandes sobre o “preconceito contra os evangélicos” é totalmente previsível na medida em que esta é a única “salvação moral” para ocultar seus crimes e salvar seus próprios pescoços atolados na lama do crime organizado. Como no exemplo bíblico da via-crúcis de Jesus Cristo, Edir Macedo e o casal Hernandes se equiparam na santidade de seus atos. Eles se projetam como a encarnação do próprio Jesus Cristo em sua jornada bíblica na Terra. Previsível e nenhum pouco sofisticado o patético discurso de “perseguidos”: tudo tão simples quanto dois e dois resultarem muito além de cinco.


Todavia, há poucos dias, causa espanto uma declaração completamente equivocada e desorientada do Presidente da República, Lula da Silva, em mais um evento eleitoreiro pró-Dilma. Na sanha por apoios esdrúxulos e coleta de votos, Lula desta vez pousou na inauguração de novo empreendimento da Rede Record de propriedade da Edir Macedo e sua Universal. Em mais uma das falas improvisadas de Lula, o presidente disse que a emissora de Edir Macedo é “vítima de preconceito” por parte de alguns setores da sociedade. Porém Lula “esqueceu” dos processos a respeito de formação de quadrilha e lavagem de dinheiro contra a quadrilha de Edir Macedo que estão empacados na morosidade criminosa da Justiça. Bem, para quem há pouco tempo dizia que no Brasil Jesus se aliaria à Judas na política doméstica, talvez a fala de Lula soasse para uma pá de cal para alguns resquícios da moralidade na política. Neste ínterim, cabe uma reflexão: se Deus alia-se com o Diabo, estaria Ele menos “puro” ou Satã mais “divino”?


A impunidade da Justiça beatifica a construção de impérios do crime com a mesma facilidade que se constrói fáceis e ingênuos louvores à Jesus. Quanto aos partidos políticos toda a discussão é ignorada e os mesmos adotam o “discurso de avestruz”, inclusive os partidos que se auto-intitulam mais esquerda do leque político. Em troca de votos, qualquer fé é bem-vinda. Uma cara banalização ideológica na triste rotina de desorientação e omissão!


Nem o Diabo faria melhor e mais folclórico. A “Marcha para Jesus” é um grande espetáculo de liturgias midiáticas do vazio da fé imediatista. Um ótimo cartão de visitas para as quadrilhas que utilizam a exploração desta mesma fé, com promessas envoltas de um bizarro espetáculo que entre outras histerias coletivas. Como numa instantânea liquidação de fim-de-feira, os “bispos” destas seitas prometem aos seus desesperados fiéis “alcançar Jesus” pela via material aquisição de riquezas, emprego, casamento e “descarrego” (isto é, após cada fiel estar quite com o dízimo da fé!). O palco bizarro destas seitas é atacar os preconceitos sociais, culturais e sexuais e seus semi-divinos “bispos” prometem a cura miraculosa de enfermos, portadores de necessidades especiais, alcoólatras e usuários de drogas, “tirar mulheres da prostituição”, “extração de encosto provenientes de rituais afrorreligiosos”, “curar homossexuais” entre outras “benesses da cura divina”. Os espetáculos de insanidades são imensos e macabros provenientes dos discursos irresponsáveis e preconceituosos destas quadrilhas que operam como seitas religiosas. Cabe ressaltar também na raiz básica destas retóricas pseudo-religiosas é o esvaziamento existencial da grande massa de indivíduos que buscam a qualquer custo uma “iluminação” para suas vãs existências num mundo cada vez mais fugaz, efêmero, embrutecido e alienado.


Não é raro encontrar “fiéis” que depositam até o último níquel de suas famélicas economias nas mãos destes “bispos” acreditando que estará contribuindo para a construção do “Reino dos Céus”. Inconscientemente, é possível inferir no imaginário destes “fiéis” é o pragmatismo materialista e imediatista desta “modalidade de fé”. Uma vez que cada níquel depositado é a certeza que haverá um lote no Céu esperando por sua futura alma a migrar “desta vida para outra”.


A crise na crença em Deus. Quando a mercantilização da sociedade transborda para todas as esferas sociais e imaginárias, não é difícil de entender o quanto é impossível combater ou dizimar por completo as quadrilhas que exploram a ingenuidade, a ganância e o desespero existencial de uma miríade de fiéis com “descrédito” em Deus. Em outras palavras, a “Marcha para Jesus” é mais um exemplo de mobilização de um pragmatismo materialista e descrente de um idealizado poder divino do que meras obviedades de uma “exibição de fé”. Neste caminho, Deus e o Diabo são meros acessórios descartáveis do imaginário de uma complexa sociedade alicerçada pelo aprofundamento de um arraigar materialista e vazio existencial. O fosso existencial está muito mais abaixo do que aparenta as águas da discórdia e do desespero humano.

Um comentário:

  1. Na Jugular. Onde falta lucidez e auto crítica os falsos profetas se instalam. Parabéns pelo texto.Neucir

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