quinta-feira, 2 de abril de 2020

QUEM SOMOS NÓS E PARA ONDE VAMOS?



            Em épocas de crises sem precedentes e que desafia a própria existência, entre tantos dilemas, uma das questões que mais assola a mente humana que busca alguma racionalidade, é sobre a finidade da vida. Afinal, quem somos nós e qual o futuro que nos reserva?


1.      A terra das certezas absolutas

O século XXI parecia estar fadado à consagração do sucesso da onipotência estadunidense diante de um mundo que, muitos arautos da globalização tecnológica, se gabavam dos privilégios de uma série de parafernálias futuristas, nunca antes vistas na história. O futuro teria chegado sublimando o presente e esquecendo arrogantemente o passado. Houve aqueles que já decretaram o “fim” da própria história civilizacional, com a receita do sucesso neoliberal, após a queda do Muro de Berlim: Estado enxuto, democracia à la estadunidense e liberdade absoluta para a divindade chamada “Mercado”.

Sem um parâmetro político para se contrapor ao capitalismo, os 1990 começaram com o apogeu do mercado e o declínio de quase todas as utopias possíveis que suscitassem algum confronto com a realidade. Os perigos globais, claro, eles existiam e estavam ancorados em extremismos políticos autoritários, sanguinários e desprovido de qualquer razão, diante do fracasso de políticas neoliberais que desarticularam o estado de bem-estar social dos países europeus e dos Estados Unidos, elaborados no pós-guerra, frente aos desafios da Guerra Fria. “Deixem os mercados agirem e se autorregularem!”, diziam, acreditando que a mão invisível de Adam Smith, seria a própria mão de Deus.

O mundo virou uma ilha, tal era a interação da circulação de pessoas e mercadorias sem fim, em uma escalada de conectividade jamais vista na história. Tudo parecia ser imutável, duradouro, sem sobressaltos, com as classes sociais mais pauperizadas razoavelmente bem domesticadas pelas grandes elites dominantes. 

A democracia ocidental e seus arremedos orientais criavam uma aura de “normalidade” social e afastamento ou confinamento dos “indesejáveis”, em bolsões de miséria e abandonados à sua própria sorte. Com um forte aparato repressivo, os descontentes eram rapidamente desmobilizados e seus sindicatos transformados em entidades cada vez mais desacreditadas, através de uma burocracia inútil. 

Tudo parecia caminhar para um destino-manifesto de uma globalização excludente, reinando o receituário miraculoso da administração neoliberal: política de austeridade, Estado mínimo, privatização de bens públicos e a imposição lei da selva do Mercado e na vida social.Até que apareceu um vírus errante...



2.      E o vírus chegou...

Nada mais biológico e destrutivo para tirar uma casquinha da ferida do narcisismo humano, do que pragas típicas de animais e plantas acossarem a pretensa racionalidade material, colocando o ego de joelhos e mãos clamando à algum salvador imaginário. Pandemias não são novidade na história humana. Desde a chamada “peste negra” em tempos medievais, entre 1343 e 1356, causando a morte estimada de 75 a 200 milhões de pessoas no planeta à época. Em 1817, uma pandemia de cólera matou centenas de milhares de pessoas. De 1918 a 1920, o vírus influenza causou a chamada “gripe espanhola”, exterminando entre 40 e 50 milhões de pessoas ao redor do globo.

Enfim, sem pedir licença, se impôs ao invencível e tecnológico século XXI. Pandemias, com resultados menos letais, foram registradas com a ação de variâncias de coronavírus que causou o SARS (Síndrome Respiratória Aguda Severa) que matou 774 pessoas e infectou mais de 8 mil em 2003 e o  MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) que vitimou 858 de apenas 2500 pessoas infectadas, em 2012, no Oriente Médio. Entre 2009 e 2010, de 700 milhões a 1,3 bilhão de pessoas foram infectadas pela variante do vírus influenza, o H1N1, chamada de “gripe suína”, com uma estimativa de até 500 mil mortes. Na África Subsaariana, entre 2015 e 2016, o vírus ebola contaminou cerca de 30 mil pessoas, causando a morte de mais de 11 mil pessoas.

Mas o pior estaria por vir... No final de 2019, a partir da cidade chinesa de Wuhan, o mundo conheceu um novo tipo de vírus que infestava rapidamente a população local, provocando adoecimento entre os adultos e uma alta mortalidade entre os mais velhos. A nova ameaça surgia, sorrateiramente, a partir dos subterrâneos dos mercados chineses de animais exóticos, para a sanha comestível da população local, o mais mortal dos inimigos da humanidade, deste o nazifascismo na Segunda Guerra Mundial: o novo coronavírus, denominado SAR-COV-2. Da província chinesa de Wuhan para o mundo, em poucos meses, praticamente todos os países foram infectados, com altíssima velocidade de transmissão. Uma nova palavra passou a atormentar o vocabulário dos cidadãos dos dois hemisférios: covid-19, a doença causada pela atuação cataclísmica e virótica do SAR-COV-2.

O coronavírus SAR-COV-2 se apresenta altamente perigoso e devastador. Atualmente, início de abril de 2020, ultrapassou um milhão de pessoas infectadas no planeta, causando mais de 50 mil mortes, em especial na Itália, Espanha, Estados Unidos e França. Os números de contaminados e mortos ampliam-se velozmente a cada dia ao redor do globo. China e Coreia do Sul, primeiros países a sofrerem com a novata epidemia do SAR-COV-2, conseguiram, momentaneamente, controlar o avanço do coronavírus, com a adoção de seríssimas medidas restritivas, além da detecção e controle sistemáticos de possíveis contaminados. O vírus ainda não atingiu o pico da epidemia global, mas mudou radicalmente todas as estruturas socioeconômicas de forma jamais vista, na história humana do planeta Terra.

A única medida que se apresentou com significativa eficácia para retardar a velocidade de infestação pelo novo coronavírus foi o isolamento social, ou seja, o confinamento dos cidadãos dentro de seus domicílios. Essa medida drástica impacta diretamente na interrupção de todas as atividades econômicas e sociais de uma forma jamais vista. Diante dos exemplos chinês e sul-coreano, quase todos os países do mundo estão experimentando algum tipo de isolamento total ou parcial, buscando conter o avanço agressivo do SAR-COV-2.

Trocando em miúdos, diante das consequências do avanço da infestação do novo coronavírus, praticamente, a maior parte da economia planetária, com maior ou menor intensidade, está de quarentena! Vidas, famílias, amigos, trabalho, impactados diante da dinâmica social alterada, drasticamente, pela mudança abrupta do estilo de conduzir o cotidiano de bilhões de pessoas. O cenário distópico, outrora presente em filmes de ficção científica, se materializou na vida real: ruas desertas, comércio fechado, transportes racionados, ausência de espetáculos, jogos, adiamento de Olimpíadas que se realizaria no Japão. O mundo simplesmente estava sem humanos em suas quilométricas ruas!

Aglomerações típicas da cultura humana viraram sinônimo de perigo iminente e são recomendados por autoridades governamentais e científicas a não serem formadas, a fim de não propiciar o contágio. Seja nos grandes centros, seja nas cidades de menor porte, a vida social se transformou em vida confinada. Como se, finalmente, a Terra tivesse parado e o medo ventilado na atmosfera!

Medo é a palavra de ordem. As certezas se reduziram a angustiantes notícias de diversas mídias, as quais bombardeiam uma macabra contabilidade de contaminados e corpos. O medo que impregna o cerne, nem água com sabão consegue eliminar! Cuidados para evitar a contaminação e a preocupação com o futuro, se tornaram elementos norteadores da ansiedade social que se desenrola como fobia social. Na luta pela sobrevivência diária, diante de um inimigo invisível, outrora reservados ao uso restrito,  máscaras de proteção e álcool gel ou álcool 70%, se tornaram objetos do desejo de toda a humanidade e, consequentemente, repercutiu em escassez e preços elevados. Limpamos sistematicamente os nossos corpos, como uma forma obsessiva de purificação salvadora da alma.

Um microscópico vírus impôs a maior de todas as ironias perversas da natureza humana: o contato humano é fator de risco para a própria espécie! Conversar próximo ou tocar o outro, simples gestos humanos, se tornaram um pavor real, diante de uma pandemia que se transmite por emissão de gotículas de agentes patógenos de um individuo contaminado que, encontrando mucosas faciais de outro indivíduo, prossegue a contaminação exponencialmente. Uma nova sociabilidade se forjou com o uso do distanciamento social. Pessoas desconhecidas ou entre os próprios familiares e entes queridos falando com distância mínima de segurança e com uso de algum tipo de proteção. Todas estas medidas objetivaram inibir o contágio e não contribuírem para que todos fiquem doentes ao mesmo tempo, repercutindo em colapso nos sistemas de atendimento à saúde regional.

Hoje a humanidade se encontra refém de um vírus que, simplesmente, irá levar à uma das maiores depressões globais de todos os tempos. A questão central não é mais a dúvida quanto a este fator, mas o percentual possível de quedas significativas nas economias dos principais países do globo. Nada mais emblemático que o fato dos principais aeroportos do mundo estarem praticamente às moscas. As medidas restritivas impactaram no bloqueio de fronteiras e fluxos aéreos.

A globalização tem, como componente fundamental, o intenso fluxo de pessoas e produtos comerciais, desde o final do século XIX e intensificada de forma extraordinária no século XX. Nenhuma das duas grandes guerras do século XX conseguiu fazer o que o novo coronavírus está fazendo agora, de forma abrupta e planetária: o cerco por completo das nações e o imobilismo do fluxo comercial que afeta diretamente o capitalismo. A guerra invisível ao coronavírus se transformou na própria guerra que implica na sobrevivência no capitalismo, do setor produtivo que enfrentará o anunciado e avassalador abalo sísmico, o qual poderá se aproximar da grande da crise do capital de 1929. Afinal, sem crises cíclicas não há capitalismo!

Quem poderia imaginar que, diante de tantas tecnologias e velocidade dimensionada para a produtividade da vida sem descanso, um vírus seria causa de estagnação e retração socioeconômica? Pessoas e não objetos ou máquinas são quem movem realmente o mundo. O mundo do capitalismo desenfreado pariu o neoliberalismo, a partir dos anos 1980, com a promessa de liberdade máxima dos mercados e atuação ou intervenção mínima do Estado.

           Com a hecatombe de mais uma crise econômica que se intensificou com a pandemia do coronavírus, assistimos, diariamente, todos os Estados intervindo drasticamente nas economias afetadas pela crise, derivada do isolamento social, que repercute em todas as esferas econômicas de produção e circulação. O coronavírus escancarou a lembrança da força da mão de obra trabalhadora, como o principal motor da produção e, por sua vez, fez recordar a importância dela no processo da dinâmica da economia. 

       Nada mais sintomático é o pedido de regulação dos mercados pelo Estado e forte intervenção na economia, tanto para combater o coronavírus, quanto para salvar as empresas privadas da falência. Portanto, o coronavírus representou descrédito e desmoralização das práticas neoliberais e reconduziu o Estado mais intervencionista, não apenas com bilhões de dólares ou euros, mas na casa dos trilhões de investimentos, ao estilo de políticas econômicas keynesianas.



3.      Isolamento do mundo, aproximação de si?

Para os países que adotaram o isolamento social, com maior ou menor nível de confinamento, repercutiu como método para frear a velocidade de contágio, cujo seu efeito colateral custa ferozmente o declínio da economia local. Diante da necessidade de reclusão social, o combate ao coronavírus produziu sociedades que invocaram um verdadeiro estado de sítio momentâneo. 

As liberdades civis ficaram restritas ao direito de ir a locais essencialmente de abastecimento alimentar, saúde e alguns serviços. Com o fechamento de todas as demais atividades comerciais, o isolamento permitiu uma oportunidade de profunda reflexão sobre os impactos de um mundo voltado para o narcisismo e materialismo extremo. 

O medo de contágio pelo coronavírus consolida outro olhar perante a própria relação humana com os demais. De repente, famílias conseguiram ficarem mais próximas em meio ao isolamento, tendo a possibilidade de despertar outros olhares sobre si e sobre a realidade que as cerca. Todavia, este olhar é de um otimismo, diante da catástrofe humana, causada pelos estragos de um vírus, cuja letalidade ultrapassa a expectativa de infectados e corpos dentro de sacos pretos.

            O momento é de união entre as pessoas, entre os Estados. União de esforços e com o distanciamento físico necessário entre as pessoas. Cabe aos governos uma ampla implementação de renda mínima não apenas agora, emergencialmente, mas que possa se prolongar de tal forma que jamais um ser humano fique desassistido, minimamente, durante a sua existência. O programa de transferência de renda tem que buscar ser universal e com prazo indefinido, enquanto ainda houver alguma pessoa em situação de risco. É hora de mudar as estruturas da perversão do capital, em nome da possibilidade real de bem-estar social.

Não é possível mais aceitar que um microscópico grupo de pessoas possa represar para si, uma quantidade de recurso equivalente a quase metade de toda a riqueza do globo. É urgente a criação da taxação de grandes fortunas, para que possam ser transferidas, estas riquezas, para a geração de recursos voltados às vítimas do isolamento social e à manutenção dos serviços de saúde. O parasitismo capitalista é mais danoso para a espécie humana, do que qualquer inimigo biológico!  Qual a razão de se acumular tantos recursos para si se estiver morto? O vírus não reconhece nenhuma classe social e é voraz para todos aqueles que desafiarem sua arquitetura de contato.

Tudo o que foi pensado sobre os avanços da tecnologia não foi páreo para o que está sendo visto. Um mundo acuado e isolado em suas residências, diante de uma emergência sanitária de origem biológica, cuja proporção em termos de volume de recursos, perdidos ou investidos, são de valores amplamente inéditos na história da civilização humana. Estamos em mais um desafio enquanto seres que ainda habitam o planeta Terra: mudamos certos modos de nos relacionarmos entre nós e com o mundo, ou seremos brevemente tão reduzidos, cujas formas de sobrevivência colocarão em risco a própria existência humana.

Nós somos uma espécie biológica de incrível resistência, mas também somos uma espécie que, mesmo com extraordinários recursos de toda a memória histórica construída por milhares de anos, teimamos em ignorar todas as evidências científicas e racionais para, ainda, vivermos segregados e domesticados nas gritantes divisões entre ricos e pobres, entre os que têm problemas de saúde devido aos excessos de alimentação e a morte moribunda de famélicos, entre os que dormem em palacetes e os vagam sem sequer terem um chão para se deitar. Será preciso um vírus grotesco e selvagem para ceifar milhares de almas de indistinta classe social, para que possamos compreender a finitude e a fragilidade da dimensão humana?

Da crise sanitária causada pelo coronavírus, cairemos no lamaçal de uma crise econômica profunda, cujos reflexos podem durar anos para a total recuperação. Porém, poderá ser acelerada, se forem redefinidos os padrões de acesso aos bens produzidos e coibido o nível de especulação parasitária financeira. Toda crise sempre deixa suas lições de grande valor para aqueles que conseguem sobrevier com lucidez. Em toda crise há caminhos que podem ser observados, para serem desbravados sobre olhares que permitam superar os antigos obstáculos.

Estamos diante de uma das maiores crises humanitárias de todos os tempos. Entre dúvidas e especulações alucinógenas, busquemos o refúgio na serenidade e na racionalidade. Sairemos desta crise mais fortalecidos do que antes, quando fomos tragados para suas entranhas. Não podemos esquecer a devida sensibilidade e a projeção de um mundo que reduza ou elimine as diferenças de classes sociais e multiplique o trabalho, a renda, a produção e as possibilidades de manutenção da vida humana. Mais do que nunca, isolados em nossos domicílios, poderemos dispor de algum tempo para refletir, de forma mais complexa, sobre a necessidade de compreensão sobre nossa própria existência: nós somos o que somos e o que faremos com tudo isto?


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Wellington Fontes Menezes – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF)








Um comentário:

  1. Maravilhoso texto
    Mto bem escrito retratando a nossa verdadeira realidade
    Nós bem sabemos como chegamos aqui
    Foi preciso acontecer uma pandemia para que os olhos do mundo se voltassem para a triste realidade que estamos vivendo e que já vínhamos vivenciando a mtos anos
    Vamos ver se agora nossos governantes se unam para o bem da população e não em benefício próprio que como foi dito no texto acima haja uma conscientização que todos somos iguais não importando qualquer classe que pertençam para que o vírus possa atacar
    Vamos fazer uma redivisão de rendas para que possa abranger a toda população de todos os países pois todos pertencemos ao planeta Terra
    Não é necessário para nós seres humanos vivermos de tanta riqueza para uns e extrema pobreza para outros
    Tenho certeza que Deus na sua infinita bondade não planejou isso para os homens
    Que ele também deseja que sejamos todos iguais
    Que o amor possa prevalecer dentro de sua casa para com os seus parentes e se estender a toda humanidade como amor ao próximo
    Vamos aproveitar a redistribuição de rendas para equiparmos os nossos hospitais, pagarmos melhor aos cidadãos que zelam pela nossa saúde, darmos melhores atendimentos a quem tanto necessita, pagar melhor aos nossos professores dando oportunidades a eles que possam cada vez mais melhorarem os seus currículos para darem um ensinamento melhor aos nossos jovens,melhores escolas públicas uma segurança com treinamento e salários melhores para que possa cuidar de todos os cidadãos, melhor transporte público, oportunidade de empregos a todos que necessitam, moradias, alimentação entre tantas coisas que devemos a população

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