terça-feira, 7 de setembro de 2010

Cenas da Tecnobarbárie



Foto do estudante Harish, 11, usando um laptop que ganhou com o projeto "um laptop por criança", de uma ONG na localidade de Khairat, em Mumbai (Índia) na Folha.com de 07.09.2010.

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A ciência não é uma ilusão, mas seria uma ilusão acreditar

que poderemos encontrar noutro lugar o que ela não nos pode dar.

(Sigmund Freud)

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O mito que se espalhou sobre diferentes sociedades a respeito da "revolução humana" através do uso desenfreado da tecnologia vem produzindo efeitos paradoxais cada vez mais perversos. Por detrás do "boom" frenético de quinquilharias tecnológicas de duvidosa eficácia apoiadas por massivas e milionárias campanhas de marketing selvagem das gigantes e bilionárias empresas do ramo, o indivíduo vem sendo cada vez mais refém de espaços tecnológicos que se de um lado “conectam-no” com o mundo, por outro dão uma falsa sensação de progresso. Nenhuma tecnologia por si mesma, por mais panfletária que seja sua campanha de marketing, faz alterar consistentemente condições de desigualdade socioeconômica.


O fato de uma criança parida na miséria urbana, seja na paulistana Paraisopólis ou na indiana Khairat, utilizar o manejo de um computador não a tirará da condição de opressão e treva social. “Conectada” numa rede de computadores, a criança talvez possa agregar algum conhecimento mínimo para no futuro “enfrentar o mercado de trabalho” ou se divertir um pouco com algum novo jogo eletrônico que antes ela não teria acesso. É de um cinismo inexprimível quando empresas reclamam da baixa “capacitação tecnológica” dos candidatos a alguma vaga de emprego (naturalmente, submetido a um irrisório salário!). Uma pergunta é pertinente: se uma empresa deseja empregados para utilizar suas ferramentas tecnológicas, por que não ensiná-los? De prontidão, a resposta estará na ponta da língua de qualquer gerenciador de “recursos humanos”: “ensinar é custo para a empresa”. Logo, ter um “cidadão” tecnologicamente informado é ter um empregado “qualificado” sem maiores custos operacionais para uma empresa.


Com a “flexibilidade” e “precariedade” dos contratos trabalhistas, caso houver uma mudança drástica na tecnologia, basta demitir o trabalhador e contratar outro mais “experiente” de acordo com a nova “onda” do momento. Para o empregador, é tudo uma questão de “competitividade”: econômica, simples e asséptica! Daí surge outra cínica encruzilhada que ronda o imaginário da angústia diária dos empregados de empresas que trabalham com um dinamismo de razoável tecnologia: “atualizar ou perecer”. Não é a toa que cada vez mais as empresas incentivam “generosamente” os empregados a trabalharem em suas residências. Desta maneira, é possível extorquir mais-valia quase absoluta com o sorriso beneplácito do empregador. Mulheres em gestação ou com filhos pequenos são alvos preferenciais: afinal, a empresa “entende” o problema da mãe-trabalhadora. Logo, é sedutor para essa trabalhadora um trabalho que se utiliza dos acessos via internet e controle sistemático das suas ações (por exemplo, o uso da tecnologia de biometria) dentro de sua própria residência. Então, dentro do mesmo recinto, ela desdobra-se sob o mesmo teto entre cuidar da casa, dos filhos e ainda ficar presa ao computador “trabalhando” para a empresa. O mesmo poderá ocorrer para um funcionário do sexo masculino em situação semelhante: para o capitalismo sem freios a questão do “gênero” é apenas uma bobagem semântica. Nem os senhores de engenho do Brasil colonial tiveram soluções tão “criativas” como as utilizadas na era da tecnobarbárie!


Criar uma rede de computadores em favelas, por exemplo, poderá hipoteticamente conectar um mínimo de percentual dos seus moradores ao Orkut ou Facebook, mas não retirarão suas severas condições de miséria endêmica. Após a incorporação do ideário neoliberal no papel do Estado que se ausentou de agir na questão social (as evidências do fim do chamado “walfare state”), as ONGs assumiram o papel no vácuo da promoção social e de forma terceirizada praticam as ações (que são da esfera governamental) em trabalhos cosméticos, irrisórios e pontuais. Para ter visibilidade e atrair patrocinadores da cínica etiqueta neoliberal da “responsabilidade social”, as ONGs se armam de uma grossa camada de “marketing social”!


São inegáveis os benefícios de algumas novas ferramentas tecnológicos para sociedade. Porém, é pertinente entender que elas são apenas ferramentas e nada, além disto, ao contrário que pregam muitos arautos do agressivo marketing tecnológico. Sem cair no sedutor do discurso do fetiche voluntário da tecnociência, o uso socializável e democrático das tecnologias poderá reder bons frutos (como em muitos casos já uma notória realidade!). Todavia é preciso atentar para os perigos de uma latente clivagem ainda maior nas desigualdades sociais e entre países de diferentes domínios de tecnologias. Ainda não se definiu como as sociedades poderão se proteger com o vertiginoso cerceamento do conhecimento de um punhado de empresas bilionárias do ramo tecnológico. Por exemplo, as questões éticas sobre sigilo de informações de Estado, tecnologias empregadas na engenharia genética e o patenteamento de medicamentos ainda continuam tão turvas e obscuras como as águas do rio Tietê.


A nova estratégia de políticas públicas é criar condições fetichistas de “incorporação” da miséria ao cotidiano capitalista com maior midiático possível. Desde as políticas minguadas de transferência de renda, microcrédito ou projetos de “reciclagem” de trabalhadores desempregados. A supostas benesses da “inclusão” não param por ai: no safári da miséria, passando ainda por um mórbido e surreal “turismo” de gringos em passeios pelo interior de favelas, no bizarro “Favela Tour” como já acontece na favela da Rocinha no Rio de Janeiro e dirigida por uma ONG local. A miséria não é apenas persistente, mas também tem seu lado lucrativo ao ser explorado em todos os parâmetros sem piedade por ONGs inescrupulosas, agências e governantes atrás do voto da barbárie. Tais atores que deveriam trabalhar para eliminar a barbárie interior, apenas sustentam um clima selvagem imbuído de uma moral de exploração humana e lucratividade desmedida.


O homem contemporâneo, contaminado pelos vícios da velocidade das conexões de banda larga e sem fio, anseia por respostas prontas nas bordas do cursor do mouse. A apologia à tecnociência é da mesma proporção da solidão e vazio interior que a aridez da sociedade se configura entre seus indivíduos. Para fugir da sua solidão, o indivíduo se conecta as redes de pessoas tão solitárias quanto ele e assim socializam dentro do tear tecnológico de solidão disfarçada. A cada novo pacote de tecnologia que pretende “revolucionar” a revolução do pacote anterior se hipnotiza pelas sensações táteis e midiáticas das processas tecnológicas. Bastar estar “plugado” em alguma conexão que todos os problemas e angustias serão “deletadas” com um único e preciso “clique”. No afã messiânico de libertação humana, o risco é sempre de ficar mais preso ainda nas armadilhas da caixa de Pandora. A tecnobarbárie, produto imediato da tecnociência, é apenas mais um sedutor e atualizado mecanismo que endogeniza e “naturaliza” as desigualdades na idéia-força sob o rótulo pueril de “civilização humana”. Para reiniciar um novo horizonte, não bastará dar apenas um mero [Ctrl] + [Alt] + [Del]. Um novo olhar para o mundo pede muito além disso...


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