quinta-feira, 22 de abril de 2010

As Pétreas Heranças do Velho Muro


Entender o mundo após a queda física e simbólica do Muro de Berlim (1989) não é uma tarefa trivial. A derrocada do mundo socialista vem bem antes da queda do famigerado muro, porém a materialização de suas conseqüências poderá ser discutida referencialmente a partir da década de 1990.


O mundo ocidental e seus satélites de influência entraram numa onda neoconservadora baseada em duas premissas: o mercado liberal e a democracia (na sua vulgata essencialmente eleitoral). A subida ao poder de Ronald Reagan (1981-1989) nos Estados Unidos e Margareth Thatcher (1979-1990) na Inglaterra marcou a virada conservadora nos centros decisórios da política ocidental e nas economias capitalistas centrais. Substituindo algumas premissas keynesianas da reestruturação macroeconômica do pós-guerra, o estofamento ideário que norteou a economia foi o liberdade irrestrita do mercado cujos arautos pertenceram ao que convencionou chamar de “Escola de Chicago” tendo o economista estadunidense Milton Friedman (1912-2006) como o seu principal expoente. Logo, uma vez que a hegemonia capitalista aterrou o “fantasma do socialismo” (enfatizando a estirpe stalinista) seria possível surgir um “novo mundo” sem fronteiras (econômicas).


Na crista dos “novos tempos”, o filósofo estadunidense Francis Fukuyama sentenciou o “fim da História” como sendo a vitória do capitalismo sobre qualquer outro modo de produção e a democracia burguesa como o ápice da espécie humana. Todo este arcabouço foi escancarado e multiplicado pela Big Mídia internacional que acabou sendo batizada com o termo “globalização” (ou na versão que considero a mais realista defendida principalmente pelo francês François Chesnais, a “mundialização”). A ideologia neoliberal foi corrosiva de tal ponto que estremeceu com todas as estruturas que alicerçavam o mundo capitalista. A antiga ética do “trabalho” forjada pelo usufruto do trabalho foi sendo paulatinamente substituída pela ética do “consumo”. Neste sentido, todas as relações sociais são profundamente transformadas, desde questões cerceadas pelo mundo do trabalho até as questões relativas ao corpo e afetividade.


Palavras e expressões novas de vernizagem neoliberal rechearam o vocabulário do “politicamente correto”: “empreendedorismo”, “responsabilidade social”, “desenvolvimento sustentável”, “relação empresa-cliente”, “missão da empresa”. O imediatismo e rapidez que as transformações ocorrem são tão viscerais a tal ponto que o sociólogo Zygmunt Bauman denominou o momento atual como sendo a “modernidade líquida”. Do celular à TV a cabo, do “empreendedor” de si mesmo à terceirização do trabalhador (vide o exemplo dos operadores de telemarketing), dos sites de relacionamento digital às casas de suingue, o consumismo é a transformação da sociedade em uma horda de consumidores vorazes de indispensáveis futilidades. A necessidade por bens supérfluos transpôs as barreiras das classes mais abastadas e penetrou por toda classe média baixa, incluindo guetos e favelas. São crescentes as despesas das famílias por bens que não são prioridades existenciais. Logo, a vida sob a batuta do hiperconsumo se torna refém de um oceano de possibilidades mercadológicas. A retórica da liberdade se torna a angústia do consumismo. Com estes condicionantes, Giles Lipovetsky denomina nossa era como sendo a “hipermodernidade”.


A “cidadania” (utilizando velhos preceitos da burguesia pós-Revolução Francesa) cedeu espaço para o “clientismo”. Conceitualmente, somos “clientes” e não mais “cidadãos”. Hospitais privados e clínicas médicas tratam da saúde dos seus “clientes”, escolas e faculdades privadas lecionam para “clientes”, torcedores filiados a clubes de futebol são “clientes” dos clubes-empresas, marqueteiros profissionais produzem discursos para “políticos-clientes”. A política se tornou “desnecessária” e os Estados Nacionais vem sendo gradativamente sucumbindo às empresas transnacionais (corporações). A proliferação de ONGs é um exemplo da diluição da política e a terceirização das ações políticas. Tal como uma empresa de “empresa jurídica” qualquer, pode-se abrir ou fechar uma ONG da mesma forma que uma quitanda, mudar de ramo, valores ou objetivos. O curioso que a panspermia de ONGs é supostamente seria um movimento “apolítico da sociedade civil” (como se tal conjectura fosse possível!).


Comparada com o “crash” de 1929 que solapou a economia mundial da época, a crise financeira mundial de 2008, desencadeada a partir da bolha imobiliária nos Estados Unidos, foi outro exemplo do lastro da atualidade da mundialização do capital. Um grupo de empresas de crédito foi à falência no especulativo e mirabolante marcado imobiliário estadunidense e se espalhou pelas bolsas de valores do mundo inteiro. A agiotagem profissional em escola global não encontrou lastro para suas bilionárias operações e a “quebra” de muitos bancos foi inevitável (muitas deles com grande histórico de atuação no mercado). Como um castelo de cartas, um conjunto de empresas transnacionais colecionou prejuízos colossais e devido ao seu poder de influência fez que os governos de Estados-Nações das economias centrais e emergentes viessem a socorrê-las via erário dos contribuintes (leia-se “trabalhadores”). A “socialização das perdas” foi uma espécie de arremedo “keynesiano” no mercado financeiro mundial (ou seja, a ativa ação do Estado para estancar a sangria de dinheiro privado!). O curioso é que para salvar supostamente os empregos (os tais “postos de trabalho”) a maior parte dos sindicatos (praticamente em toda a sua totalidade), pressionou governos nacionais para auxiliarem na doação de recursos públicos para tais empresas transnacionais em dificuldades financeiras. Neste ínterim, esse é um bom recorte do que gradativamente ocorrem com os sindicatos de trabalhadores que perderam sua identidade e seu espaço dentro da correlação forças entre patrões e empregados.


É importante frisar a necessidade do retorno dos estudos da Psicologia e Psicanálise para o entendimento da sociedade em busca de uma visão transdisciplinar do conhecimento social. A diluição das relações pessoais, perda de identidade, a imagem como metáfora narcísea, a descentralização e esvaziamento da política e o estilhaçamento das relações de trabalho formam os alicerces deste arcabouço de um novo mundo multipolar (sem um poder central de decisão) que se tornou tão instável quanto o antigo “velho mundo” dos tempos da Guerra Fria. O “keynesianismo militar” jamais foi abandonado e, pelo contrário, de forma progressiva vem crescendo o rearmamento mundial das grandes potências e de “anãs bélicas” como é o caso da débil corrida armamentista na América do Sul (puxado pelo histrionismo da Venezuela de Hugo Chávez e Brasil do ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva). O novo ator central das relações internacionais e principal candidata a desbancar a hegemonia econômica estadunidense, a China, já vem se armando pesadamente para enfrentar “novos desafios” para a sua condição de potência mundial num mundo multipolar. Outros países emergentes como a Rússia (herdeira do arsenal atômico da antiga União Soviética) e Índia vem fazendo coro à premissa do crescimento econômico com “responsabilidade militar”.

A guerra ao terror é o mote mais usual para convencer os contribuintes a depositarem bilhões de dólares e euros em sofisticados programas das forças armadas contra supostos “inimigos invisíveis”. Quaisquer questionamentos à ordem vigente na democracia neoliberal poderão ser taxados impunemente de ato ou ação “terrorista” (uma destas medidas feitas pelo governo dos Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro é o famigerado e xenófobo “Patriot Act”). Afeganistão, Iraque e Irã (o próximo alvo) são exemplos atuais da ação invasora da sanha carcomida imperialista guiada pelos Estados Unidos e apoiada pela União Européia em nome de uma política “antiterror” (atacar primeiro para não ser atacado). Salienta-se a curiosa observação da chanceler da Alemanha, Angela Merkel, a qual dizia que a saída das tropas alemãs de ocupação no Afeganistão seria uma “catástrofe” uma vez que significaria aquele país cair “no caos e na anarquia”. Como se algum chefe de Estado europeu ou estadunidense tivesse algum mínimo de preocupação como o povo afegão se não fosse os bilionários interesses geoestratégicos e econômicos na região!

Até mesmo a questão do uso de artefatos nucleares continua tão vivo quanto às tensões dos tempos áureos da pungente rivalidade ideológica russo-americana na Guerra Fria. Notadamente, ao contrário de uma possível “pacificação” de um novo mundo pós-muro livre das deletérias dicotomias ideológicas, a contradições entre liberdade humana e livre mercado continuam a se aprofundar criando um fosso entre um mundo possível e a realidade crua e disforme.

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