O carnaval no Brasil, na sua cepa
industrializada, é um misto entre diversão, hedonismo e pontual alucinação
coletiva que se buscar levar mais com mais interesse a fantasia do que a
própria realidade. Diante destes elementos consistentes, temos a indústria do
carnaval que recolhe vultosos lucros numa grande maquinaria de diversão e
espetáculo de massa. Em momentos de crise aguda da realidade e autoestima
coletiva ao nível dos dedões dos pés, qualquer fantasia delirante se torna
motivo de orgasmos múltiplos e senso de realidade afogando em um mar de
serpentinas e desesperança.
A campeã do carnaval carioca foi a
Beija-flor, da cidade de Nilópolis, na Baixada Fluminense, sob o ponto de vista
político, é uma das “escolas reacionárias” do Rio de Janeiro ligado ao jogo do
bicho fluminense e suspeita de compra de jurados em alguns títulos conquistados
pela escola. Como uma boa bajuladora do poder e da Rede Globo, desta vez levou
para a Marquês de Sapucaí um arremedo de enredo, típico da crítica míope da
“direita-coxinha” de matriz pequena burguesa que carrega a ostentação do mantra
do “combate a corrupção” (leia-se, anti-petismo). Para ampliar o nível de
insanidade típico desta festa brasileira, a escola ainda levou a carnavalização
da violência para a avenida, transformando fantasias e adereços bisonhos em
apologia à barbárie. Ultrapassou-se o nível da tal “crítica social” e descambou
para um alucinante “realidade” chegando até mesmo ao disparate alucinógeno de
ter fantasias de “traficantes com armas” no sambódromo. O quesito básico de uma
proposta lúdica de carnaval é sublimar a realidade e não reforçar elementos
psicóticos dela. A escola de Nilópolis aproveitou-se da falta de verbas
oficiais para compor um cenário que se ausentava de fantasias típicas do
carnaval “industrializado” e se apoderou da paixão do senso comum em prol da
vitória no sambódromo. Acima de tudo, é bom dizer que os carnavalescos da
escola foram sagazes e astutos em buscar apelos midiáticos em prol da evolução
do enredo na avenida com apelo popular. Lembrando que a Beija-flor tem como uma
das suas características históricas de ser uma das escolas que busca sempre
"causar", a apologia midiática, no carnaval e ganhar
"simpatia" do público. O ponto alto deste sensacionalismo na avenida foi
à era do polêmico carnavalesco Joãosinho Trinta. Ressalta-se que tal como uma
empresa qualquer, faz parte de uma escola de samba buscar "simpatia"
do público como mola-propulsora para conquistar títulos e, naturalmente, lucros
financeiros.
A vice-campeã fez a mesma estratégia
do "causar" na avenida. A “desconhecida” escola de samba Paraíso do
Tuiti, situada do bairro carioca de São Cristóvão, novata na passarela das
consagradas do carnaval carioca, trouxe um enredo de crítica superficial à vida
política brasileira e que causou mais furor por parte de uma esquerda com
ejaculação precoce e órfã de elementos para enfrentar a realidade do que os
próprios membros das escolas. No lastro das plumas e paetês da “neorevolucionária”
Tuiti, foi tema efusivo das redes sociais e calorosos debates da profundidade
de um pires. O mote do “Fora Temer” virou pastiche orgástico fetichista de
folião tão útil quanto vender garrafões de água em pleno Oceano Atlântico!
Tuiti se consagrou instantaneamente como a “queridinha” de pessoas mais ligadas
às esquerdas e ao esquerdismo infanto-juvenil afoito com alegorias que faziam
críticas caricaturais à ocupante ilegítimo do Planalto, Michel Temer, e
críticas ao desmonte da CLT. Todavia, a mesma escola que desfilou tais críticas
tão férreas à trituração da CLT pela junta conspiratória após tomada de assalto
o poder em 2016, foi acusada de empregar trabalhadores sem carteira assinada ao
longo da confecção do atual desfile em 2017. Para quem tem conhecimento dos
desfiles na Sapucaí, críticas sociais, veladas ou não, pontualmente sempre
apareceram na avenida nos enredos carnavalescos sem causar maior furor em
tempos de menor intensidade subjetiva da orfandade política. Vale lembrar que
foi a mesma Paraíso do Tuiti que no ano passado, fez um desastroso desfile de
carnaval que provocou um gravíssimo acidente na Marques de Sapucaí com 20
vítimas, sendo uma fatal. O ocorrido foi considerado um dos casos mais
emblemáticos dos acidentes do carnaval industrializado carioca. Porém, o "caso
Tuiti" foi “abafado” pela LIESA e a imprensa carioca, leia-se, a Rede
Globo, e a Tuiti não sofreu nenhuma punição, seja no âmbito criminal, seja na
administração do carnaval carioca.
Vale ainda lembrar que as escolas de
samba cariocas, a LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba do Grupo
Especial do Rio de Janeiro) e a LIERJ (Liga das Escolas do Rio de Janeiro), em
conjunto no ano do golpe de 2016, apoiaram a escalada golpista a qual,
oportunisticamente, este ano "criticaram" na avenida. Lembrar ainda
que foram efusivamente entusiastas do então candidato a prefeito do Rio de
Janeiro, Marcelo Crivella, o mais forte braço político de Edir Macedo, o chefe
da "Igreja Universal", maior organização neopentecostal do país com arquiteturas
financeiras e políticas que deixam as facções criminosas do narcotráfico no
chinelo. Destaca-se o apoio maciço dos presidentes da Mangueira e Tuiti para a
candidatura de Crivella na época. A tradicional e vitoriosa escola do carnaval
carioca, a Estação Primeira de Mangueira trouxe uma crítica tão pedante contra
o atual prefeito do Rio de Janeiro que até o nome do enredo da escola deixou
escancarada a posição da escola: “Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco”. O
simples corte de verbas para o carnaval de 2018 por parte do prefeito-biônico
da Igreja Universal, sabidamente que o mesmo tem ojeriza pela cultura
carnavalesca, levou a “fúria” dos carnavalescos reacionários contra a atual
cúpula do poder carioca. O samba do oportunismo em prol de vinganças
particulares seguiu a sina de cabo-eleitoral à atirador à esmo contra o atual
prefeito carioca.
Remando os enredos vencedores na
Sapucaí em 2018. Ambas as escolas abusaram da estratégia da polêmica fácil,
independente do que se propõem a ser um desfile de carnaval industrializado: a
coerência em seu percurso ao longo da avenida. Todavia, exigir coerência em
escola de samba é acreditar em contos de carnaval “revolucionário”. Deve-se ser
ressaltado que em tudo isto é preciso levar em consideração que a potente
indústria do carnaval carioca (como uma indústria capitalista qualquer) visa
lucros e somente a eles que interessa travestida no mote de "cultura
popular".
"Causar" faz parte das
estratégias de trabalho das escolas de samba. Ver algo, além disso, será
preciso deitar no divã de um bom analista. As fantasias são pertinentes para o
sujeito, assim como outros elementos que operam na fronteira entre o consciente
e o inconsciente, porém estar preso essencialmente a fantasias é criar um mundo
onde a realidade se torna impossível de penetrá-la. O aprofundamento da crise
política gerada por um golpe de estado em 2016 colocou grande parte da esquerda
brasileira (em amplo espectro) diante de uma depressão profunda e ampliou-se um
perigoso nível de autismo político que apenas favorece elementos estratégicos
da burguesia brasileira e seus títeres operacionais de plantão. Daí que mora o
perigo de transformar a vida em um grande tubo de ensaio sob a égide de uma
zona de conforto que beira a psicose em nome de uma ilusória redenção política
carnavalesca. O carnaval de 2018 deixou escancarado o sintoma de uma sociedade
à deriva, entregue a sua própria sorte e que se agarra em instantâneas
fantasias de carnaval para uma redenção que somente durou até a quarta-feira de
cinzas.