ATO
I: Pavimentando o caos
Em um pertinente artigo de 20 de abril, no espanhol “El País”, publicado no site da versão brasileira, o professor da
FFLCH-USP, Vladimir Safatle, chama atenção ao crescimento da ferocidade da
horda bolsonarista que se plasmou à imagem e semelhança do tosco presidente Jair
Bolsonaro. Para a sua análise, Safatle recorreu a uma das monumentais obras de
Sigmund Freud, publicada às véspera da Segunda Guerra Mundial, em 1939, “Moisés
e religião monoteísta”. Neste importante trabalho, Freud elabora a construção das
identidades através da personificação da liderança e com uma poderosa premissa
ressaltada por Safatle: “o poder molda os que se assujeitam”. É bom ressaltar
que não se constrói na sociedade, em particular, na Política, elementos
inéditos que já não foram gestados de forma discreta ou subterrânea. No denso teatro
da Política, nada é tão novo que não se aparenta tão velho.
A atual insanidade da distopia que
engoliu a vida política e social brasileira, desafia qualquer ficção possível.
O elogio à boçalidade se forjou como parte de uma falsa-consciência que abraça
qualquer bobagem e repudia, na mesma intensidade, qualquer sintoma que seja
verdade. Não é à toa o sucesso popular que as “fake news” fazem nos milhões de
aparelhos de celulares, transmitidas por redes sociais, diante de olhares
abestalhados, cultuando um mundo distorcido pela ignorância e pela estupidez.
A Política, como construção dinâmica da
tensão entre poderes socioeconômicos e acomodação momentânea deles, é uma
contínua reconfiguração de elementos presentes nas disputas sistemáticas da
luta de classes. É fundamental entender que o aberrante pós-golpe de caráter
civil-parlamentar-judiciário de 2016, o qual derrubou a ex-presidente Dilma
Rousseff, eleita legitimamente, fragilizou a democracia manifesta na Carta Constitucional
de 1988 e pariu um modelo destroçado e subliminar de estado de exceção, cujas
leis são impostas de acordo com as conveniências oportunistas e a tutela de um
Poder Judiciário de rapina.
A fragmentada democracia brasileira é
corroída tão selvagemente como nas fratricidas disputas entre liberais,
conservadores, extrema direita, socialistas e comunistas, no caldo político da
Alemanha do período denominado de República de Weimar (1919-1933), à espera da
tirania pervertida do Partido Nazista de Adolf Hitler. A imbecilização coletiva
é a argamassa que as elites econômicas e seus braços políticos impõem para
fragilizar ainda mais a sociedade brasileira. O “democratismo” à brasileira é o
estado da epifania de uma distopia da ignorância e do voluntarismo da cegueira
alienada.
Impulsionado pela grande mídia e pelos
setores golpistas, os quais decidiram derrubar a gestão neoliberal na economia
e progressista na assistência social do Partido dos Trabalhadores (PT) no
governo federal, o país embarcou em um processo de autodestruição de suas
estruturas democráticas. Desde as desorientadas jornadas de junho de 2013,
movimentada por um classe média psicotizada, até chegar em 2020, com o
"baile funk do corona", patrocinado por uma juventude dos rincões
periféricos que, além de ser alienada pelo capital que despreza, estas
criaturas descartáveis são movimentadas por uma jaguncice suicida que debocha
da maior pandemia dos últimos cem anos. Em termos de despejo da indústria
cultural, nada supera o atual modismo do sofrível sertanejo que, além de fazer
apologia a Bolsonaro por parte de seus alienados interpretes, colabora para a
mediocrização da música popular brasileira. A diluição da cultura contribui
para um processo desorientador de qualquer sentido civilizatório dentro da
sociedade brasileira.
Tensos foram os últimos anos, sem trégua
por parte das disputas de uma hegemonia política por parte das elites
dominantes que redundaram em mínima condensação política do estado nacional
brasileiro. Entre à chamada “jornadas de junho” de 2013 (a partir de um
protesto estudantil sobre tarifas de transportes foi capitaneada pelos setores
conservadores e se transformou em uma onda de protestos contra o governo
petista de Dilma Rousseff) à pandemia de coronavírus o país promoveu um
profundo retrocesso e quase todos os setores. Neste período, o Brasil sofreu um
golpe de Estado, elegeu um boçal fascista, destroçou direitos constitucionais
fundamentais, empobreceu sistematicamente a classe trabalhadora, colocou na
ordem do dia o discurso do ódio e do golpismo, aparelhou ministérios e
secretarias do Governo Federal com os mais ineptos representantes, além de
lotear tais setores entre militares sem nenhuma experiência de absolutamente
nada, ampliou em um terço do montante populacional do número de evangélicos e
de agremiações que operam como verdadeiras máfias dentro do aparelhamento sociopolítico.
Agora, em 2020, diante da maior crise
sanitária da sua história recente, faz um frouxo isolamento social para conter
a contaminação por um vírus letal, com crescente esgotamento dos serviços de
saúde públicos e congestiona o serviço funerário com mortos infectados. O
número de infectados contabilizados ultrapassará 50 mil nos próximos dias e os
mortos passarão dos cinco mil, sem contar os inúmeros de casos omissos diante
do desgoverno de Bolsonaro, diante da gestão da crise do coronavírus no país.
As medidas do ministro da Economia,
Paulo Guedes, são tão risíveis quanto escandalosamente omissas, perante o vasto
número de trabalhados e vulneráveis que padecem à espera de ajuda governamental
diante da crise instalada pelas medidas de isolamento social dos Estados
brasileiros. Bolsonaro e Guedes não tem nenhuma preocupação com os efeitos
nefastos da pandemia e o máximo que fazem é debochar, ou negar a existência da
letalidade proporcionada pela crise.
ATO
II: Os fanáticos arautos do golpismo
Frente ao descalabro institucional e a
força midiática anti-petista, tomou corpo um fenômeno da extrema direita
conhecido por “bolsonarismo”. Tal cepa extremista não foi obra original do
canastrão deputado histórico do baixo clero da Câmara dos Deputados, elo
umbilical das criminosas milícias fluminenses, o aloprado e tosco ex-capitão do
exército,Jair Bolsonaro. Todavia, forjou-se um canalizador de elementos
dispersos da extrema direita brasileira que enxergaram nele um eco de suas
primitivas visões alienadas, perversas e distorcidas de mundo.
Os fiéis bolsonaristas da
extrema-direita são constituídos, em sua grande maioria, de militares da ativa
e da caserna, milicianos fluminenses, pequenos e médios proprietários,
profissionais liberais da classe média, alguns grandes empresários que lucraram
nos anos petistas, parcela dos trabalhadores do transporte de carga e serviços
urbanos, um rebanho de conservadores fanáticos provenientes da manipulação de
pastores evangélicos e alguns falsos desiludidos dos anos petistas.
As ações tresloucadas da metabólica
amalgama bolsonarista, como fazer manifestação pública em frente de hospital contra
o coronavírus e o isolamento social em plena pandemia, parece indicar que está
apoiando, de forma suicida, o seu “mítico” presidente, independentemente do que
ele faz ou fala de forma descontrolada e irresponsável. Uma verdadeira horda à
serviço da violência insana, da fabricação de mentiras espalhadas em redes
sociais e seus serviços nefastos à disposição, para ser usados diante dos
caprichos do “mito”.
Desta forma, pode-se entender o atual
fenômeno do bolsonarismo como uma espécie de tentativa contrarrevolucionária
ultraconservadora e atabalhoada, diante dos progressos sociais constituídos
pela Constituição Federal de 1988.
ATO
III: Em meio a pandemia, o golpismo em marcha
A Educação, a Ciência e a Cultura vêm
sofrendo ataques sistemáticos das alas mais grotescas e débeis da sociedade,
paralelamente ao retrocesso político regurgitado pela extrema direita que saiu
do armário, entre elas, a ala bolsonarista: quanto maior o nível de jaguncismo
presente, maior a ignorância é mobilizada para atacar o conhecimento.
A miséria do pensamento crítico
pós-moderno neoliberal se resume a balbuciar "groselhas" sem nexo e
alimentar patológicas obsessões narcísicas do ego. Sintoma de um mundo que
deriva a esmo, como sólido em um imenso vaso sanitário, parte de uma esquerda
pós-moderna e empoderada classe-mediana de bairros considerados “descolados” do
eixo Rio-São Paulo que tem, como fetiche, a vocação ao narcisismo, a
glamourização da "periferia" e o desprezo pela racionalidade e
intelectualidade. O descompromisso deste grupo com a realidade é da mesma
proporção que idealizam supostas “revoluções de botequim” com “ar blasé” sobre
a miséria dos trabalhadores e desfolhando as aventuras das suas últimas viagens
turísticas.
Equivocadamente, a esquerda pós-moderna
obcecada pelo histrionismo da identidade adota o mesmo percurso retórico da
extrema direita que é a apologia do jaguncismo de beira de estrada (mas
pintam-no com uma roupagem “descolada”), o discurso histericamente
sensacionalista e a glorificação do anti-intelectualismo.
Acuada desde a queda do Muro de Berlim e
a dissolução da ex-União Soviética, a esquerda de orientação marxista e pautada
na defesa dos trabalhadores foi engolida por uma esquerda liberal que acredita
avidamente na precariedade institucional, na suposta honestidade ordeira da
disputa eleitoral e um idílico republicanismo, tal como a Santíssima Trindade.
Mais uma vez, o sintoma letárgico deste engessamento de visão de mundo da
esquerda liberal é a paralisação, quase por completo, de sua voz diante das
atrocidades do governo Bolsonaro.
Da negação do formato do planeta Terra à
negação da existência do coronavírus, o Brasil se embrutece, se apequena e se
imbeciliza de forma tão avassaladora e suicida que não será nenhuma novidade
que parcela significativa da sociedade possa vir a aplaudir de forma suicida,
um novo golpe de Estado parido por militares inescrupulosos, tendo um boçal
psicopata como títere na figura de presidente-ditador.
O espetáculo do absurdo que rege a
moribunda democracia brasileira pode ser ilustrado na patética e emblemática
declaração zombeteira de Bolsonaro afirmando que: “A constituição sou eu”!
Bolsonaro, a todo o momento, demonstra total desprezo pela democracia, pelos
direitos fundamentais constitucionais, desespero do oceano de mais de 13
milhões de desempregados e pelas pilhas de mortos sucumbidos pela COVID-19. Bolsonaro
despreza perversamente qualquer forma de vida, a qual ele não reconhece se não
for o seu próprio espelho.
Para ser mais surreal, o modo caótico de
Bolsonaro desgovernar é simplesmente desprezar até mesmo seus colaboradores
mais próximos e ministros tal é a “fritura pública” que ele gosta de promover,
sendo o caso mais notório dos últimos dias foi a novela da demissão do
ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Mal Mandetta foi demitido e
trocado por um poste funerário servil a Bolsonaro, agora, a “bola da vez” está
sendo o ex-todo-poderoso chefe da Lava Jato que foi pivô da derrubada de Dilma,
prisão de Lula, manipulou as eleições para dar chances reais de vitória de
Bolsonaro e ganhou dele um ministério inteiro, o da Justiça, o ex-juiz Sérgio
Moro. Os rumores é que Moro teria pedido demissão do cargo, mas é certo que ele
permanecerá até ser fritado à exaustão, tal como ocorreu com Mandetta.
No meio do circo político comando por
Bolsonaro, até mesmo o “Posto Ipiranga” de Bolsonaro, Paulo Guedes está
começado a ser exposto na máquina no triturador do desorientado ocupante do
Planalto. O bolsonarismo é a versão do jaguncismo tosco, violento e medíocre na
política, ou seja, um eterno curto-circuito no sanatório. Em todos os casos, a
mediação passa necessariamente pela ala militar que, de fato, assumiu a sustentação
política interna do governo Bolsonaro. É importante ressaltar, que a total incompetência
de inepto Bolsonaro para indicar quadros políticos permitiu a ele delegar as
funções de gestão pública do poder nas mãos dos militares que possuem atualmente
uma força institucional tão grande quanto os tempos nefastos da retrógrada ditadura
militar (1964-1985). Nenhum pesadelo consegue ser tão temível quanto a
realidade política brasileira!
De qualquer modo, as sementes do
retrocesso já foram lançadas desde o golpe de 2016 e se enraíza cada vez mais
tragicamente no cenário político brasileiro. Alienação e ignorância matam mais
do que qualquer vírus em uma pandemia. A miséria humana, social e política
impõem ao país um retrocesso cada vez mais abissal e que encaminha para um
aprofundamento de uma crise civilizatória histórica. Se nada for feito para impedir
que o jaguncismo fascista, sob a projeção do fanatismo bolsonarista, possa
dominar, de fato, a vida política nacional e que leve adiante o projeto
genocida de destruição social, certamente ocorrerá uma tragédia sem precedentes
e desfiguração daquilo que conhecemos como Estado brasileiro.
Definitivamente, se o Brasil deseja
conter um genocídio em curso, é preciso afastar não apenas o vírus, mas a
figura mais maléfica do país atualmente que é seu zombeteiro-mor da
presidência. Não é mais possível nenhuma sustentação do governo Bolsonaro em
seguir a frente no esfacelamento da sociedade brasileira. Bolsonaro é o maior
dos problemas a ser enfrentado pelos brasileiros, por sinal, muito mais letal
do que qualquer crise pandêmica.
Wellington Fontes Menezes é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF)